bsdfsd
Todos os Direitos Reservados. Copyright © 1957 para a portuguesa
da Casa Publicadora das Assembléias de Deus.
Titulo do original em inglês:
The catacombs of Rome
Copyright © 1923 Tipografia Progresso, Porto, Portugal. Tradução
de Jose Luiz Fernandes Braga Júnior
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional
dos Editores de Livros, RJ.
Scott, Benjamin.
S439c As Catacumbas de Roma / Benjamin Scott. - 4. ed. -
Rio de Janeiro : Casa Publicadora das Assembléias de Deus,
1982.
1. Catacumbas 2. Cristianismo - História I. Título
CDD - 270
CDU - 27
13a Edição/l996
Agradecimentos
Este livro não seria digitalizado se não houvesse a
importante contribuição com a Vakinha realizada por
nosso site:
http://www.vakinha.com.br/Vaquinha.aspx?e=31190
Que Deus abençoe a cada um que contribuiu para
compartilhar a todos.
E-book digitalizado com exclusividade para o site:
www.bibliotecacrista.com.br
e
www.ebooksgospel.com.br
Digitalização e Revisão: Levita Digital
23/02/2011
Por gentileza e por consideração não alterem esta
página.
Aviso:
Os e-books disponíveis em nossa página, são
distribuidos gratuitamente, não havendo custo algum.
Caso você tenha condições financeiras para comprar,
pedimos que abençoe o autor adquirindo a versão
impressa.
índice
Prefácio à primeira edição
Apresentação
1. O paganismo e o seu culto
2. A sociedade sob a influência do paganismo
3. O cristianismo e as catacumbas
4. As catacumbas e o seu testemunho
5. Os epitáfios das catacumbas
6. Romanismo: "cristianismo" adulterado
7. As revelações das catacumbas contra o romanismo
Prefácio à Primeira
Edição
TODOS os historiadores concordam em que o apareci-
mento do Cristianismo marca o início duma era nova, de
progresso material e de perfeição moral. A civilização antiga,
que aqui e ali atingira extraordinário brilho, estava por toda
parte manchada de sangue pela crueldade e pela tirania. As
lágrimas dos escravos e a miséria dos oprimidos misturavam-
se ao fausto e à grandeza dos opulentos, sempre insensíveis às
dores dos seus semelhantes. A Palavra de Cristo bastou para
transformar a sociedade antiga e queimar a gangrena do vício
que a corroia. O Evangelho foi, incontestavelmente, a mais
poderosa alavanca da civilização e do progresso.
Para muitos, essas afirmações talvez pareçam gratuitas. É
que não reconhecem no Cristianismo atual» o poder moral
para tamanha obra. Dizem que o Cristianismo hodierno, com
todo o seu desenvolvimento, não pôde evitar essa medonha
hecatombe que foi a grande guerra. (*) Para esses que assim
pensam, AS CATACUMBAS DE ROMA, de Benjamin Scott,
devem ser uma verdadeira revelação
(*) O autor refere-se à Primeira Guerra Mundial. N.R.
O livro mostra o Cristianismo na sua pureza, no seu vigor.
Nele aprenderão que muito do que hoje se chama
Cristianismo é apenas uma sombra disforme de Cristianismo:
está longe do Cristianismo de Cristo.
Nos cristãos das CATACUMBAS DE ROMA, e nos cristãos
do Novo Testamento, vemos um Cristianismo que é fé, que é
virtude, que é amor, que é vida real, e não mera forma. Ê ação
consciente, sempre em harmonia com o ideal de Cristo.
Fossem todos os que atualmente se dizem cristãos células
assim vivas de fé, esperança e caridade, veríamos se o corpo
social, no que tem de mau e de impuro, não se transformaria
por completo, atingindo a perfeição! Veríamos se ideais tão
práticos e tão úteis, como esse da Liga das Nações de acabar
com as guerras, não teriam realização imediata!
anos, por ocasião dum congresso acadêmico que se
realizou em Roma, visitamos as Catacumbas. A impressão que
sentimos ainda hoje perdura. Ao atravessarmos aquelas
galerias subterrâneas; ao lermos, à luz da velinha que
levávamos na mão, as inscrições de devoção e de crença
gloriosa de tantos heróis da fé, e ao encontrarmos ainda nesta
ou naquela cripta os ossos de tantos mártires, evocamos esses
tempos ominosos dos Cézares e a vitória que, por fim, vieram a
ter os que souberam ser fiéis. Chegados a um cubículo, onde
mal se puderam reunir de pé, apertada-mente, uns cinqüenta
congressistas, e onde outrora, no tempo das perseguições, se
juntavam os cristãos para as reuniões de culto, ouvimos dum
sábio professor italiano, nosso cicerone, um expressivo resumo
histórico desses verdadeiros monumentos da e da
heroicidade cristã. Para mais nos comover, esse resumo
terminou pela leitura dos capítulos XI e XII da Epístola aos
Hebreus. No fim, todos tínhamos os olhos umedecidos pelas
lágrimas, mas o coração fortalecido para a fé.
Quem percorrer atentamente as páginas das CATA-
CUMBAS DE ROMA e seguir com cuidado as eruditas ex-
plicações do seu autor, de, forçosamente, colher impressões
semelhantes às que eu colhi quando percorri em pessoa essas
Catacumbas. Benjamin Scott é hoje um esplêndido
cicerone para nos mostrar as Catacumbas e para nos ensinar
as úteis lições que delas se podem tirar.
Faltam-nos em português livros como este, que facilita o
estudo aos que queiram conhecer o Cristianismo como ele é,
quando digno desse nome.
Prestou um grande serviço à Obra de Deus quem fez a
tradução e promoveu a publicação de AS CATACUMBAS DE
ROMA. Merece os nossos sinceros aplausos e vai, por certo,
receber os agradecimentos de todos os que lerem esta
interessantíssima obra, pelo proveito e prazer que ela lhes
proporcionará.
ALFREDO DA SILVA
Apresentação
muitas maneiras de demonstrar a paganização do
catolicismo romano: pela própria história de seus dogmas,
pela Palavra de Deus, pela evolução do culto pagão, pelos
escritos dos chamados "pais da Igreja" e pelo exame das
catacumbas romanas. Sem desmerecer os demais argumentos,
Benjamin Scott lança mão dos mais seguros registros
históricos, acerca-se de autoridades tão renomadas no assunto
como ele próprio e mostra, pelas inscrições tumulares dos
primeiros séculos, quão simples, pura e bíblica era a dos
primitivos cristãos, em contraste com a religiosidade confusa e
paga do atual "cristianismo" romano.
Os milhares de peregrinos que visitam Roma e suas an-
tigas catacumbas não fazem idéia da extensão destas. Scott
afirma que cerca de 70 mil inscrições foram exploradas e
catalogadas, significando esse número apenas uma pequena
fração de uma vasta necrópole com quatro milhões de
sepulturas em mais de 800 quilômetros de galerias
subterrâneas! "Nesta silenciosa cidade dos mortos" - diz ele -
"vemo-nos cercados por uma poderosa nuvem de testemunhas,
uma multidão que ninguém pode contar, cujos
nomes, desprezados na terra, estão inscritos no Livro da Vida.
"
Em seu prefácio d segunda e terceira edições desta mo-
numental obra, registrou o saudoso Emílio Conde: "A tradução
e a divulgação da obra de Benjamin Scott, As Catacumbas de
Roma, deve-se d operosidade do notável servo de Deus, J.L.
Fernandes Braga Jr., o qual prestou, com esse esforço,
incalculável auxílio ao evangelismo do Brasil e Portugal. A
presente edição deve-se ao gesto da nobre dama viúva
Henriqueta Fernandes Braga, continuadora da obra iniciada
pelo varão que teve por esposo, e que tanto honrou o
Evangelho, autorizando o Editor a dar publicidade ao famoso
livro que Benjamin Scott tão bem documentou".
Reiteramos nossos agradecimentos à ilustre família Braga
pelo privilégio de podermos trazer à lume esta valiosíssima
obra, desta feita em edição de luxo, em que se introduziram
apenas as indispensáveis alterações ortográficas e semânticas.
Também, graças à dedicação do artista plástico Ronaldo
Antunes, todas as ilustrações constantes das edições
anteriores foram esmeradamente refeitas, para maior
enriquecimento deste interessantíssimo documento histórico.
Rio de Janeiro, maio de 1981.
Abraão de Almeida
Diretor de Publicações
1
O Paganismo e o
seu culto
"Os lugares tenebrosos da terra estão cheios de moradas de
crueldade", Salmo 74.20.
O assunto do presente volume apresenta-nos a época
chamada "o período de Augusto". Essa época, começou com o
reinado de César Augusto, nascido mais ou menos no ano 63
a.C. e compreende o período dos seus sucessores imediatos.
Ela foi notável pela florescente condição da literatura e do
saber e pelo próspero cultivo das belas artes.
O grande Júlio César, tio e predecessor de Augusto, tinha
pelas armas vitoriosas tornado tributárias de Roma todas as
nações circunvizinhas. Assim, o Império Romano, quando
Augusto subiu ao trono, compreendia quase todo o mundo
então conhecido.
A religião dessas nações, com a única exceção dos judeus,
era o paganismo, numa ou noutra forma, que era também a
religião da Roma Imperial. Com as suas armas, Roma levava
seus deuses a outras nações e promovia-lhes
1
3
culto. Por conveniência política, Roma adotava deuses de
outras nações pagas, admitindo-os no seu Panteão. A índia
longínqua, a Citia, a África Meridional e a China, ainda que
não conquistadas, e por conseguinte não tributárias de Roma,
eram também pagas. Não obstante as divindades adoradas
nesses países serem diferentes em nome, os seus atributos e
caracteres podiam facilmente identificar-se com os adorados
no Império Romano.
O sistema pagão era Politeísta, isto é, eles adoravam
muitos deuses. Geralmente, essas divindades eram repre-
sentadas por qualquer forma humana, tais como Júpiter, rei
do Olimpo, e muitos outros ídolos cujos nomes são, sem
dúvida, familiares - Marte, Mercúrio, Netuno, Baco, Vulcano,
Juno, Vênus e outros, que eram os deuses ou advogados da
guerra, do roubo, do deboche, da embriaguez. Outros
personificavam virtudes cívicas e domésticas.
Os deuses de Roma, os reis divinizados juntamente com
deuses estrangeiros (tais como Isis, deusa dos egípcios) e com
divindades menores ou semideuses, que presidiam a países,
cidades, rios, estações e colheitas, elevavam a centenas a lista
dos "muitos senhores e muitos deuses", a quem, na época a
que me refiro, o mundo civilizado rendia homenagem e
prestava culto.
Poder-se-iam citar inumeráveis autores para provar o
número e a inutilidade de tais divindades. Um escritor dessa
época observa satiricamente: mais fácil achar um deus do
que um homem "(1) Lívio, falando de Atenas, capital da
Grécia, diz que estava cheia de imagens de deuses e de
homens enfeitados com toda a espécie de material e com toda
a perícia da arte (2). Outro escritor declara: "Por todos os lados
há altares, vítimas, templos e festas" (3).
Mas os romanos o adoravam somente os deuses que
tinham inventado. Na sua ânsia por um Deus verdadeiro, "se
porventura o pudessem achar", e tendo consciência de que
devia haver algum mais digno da sua estima do que as
(1) Petrónio, Sat. XVD.
(2) Tito Lívio, 45,27.
(3) Luciano,
Prometheu,
livro I, p.180.
vis criações da sua corrupta imaginação, ajuntaram aos
milhares de altares mais um: o altar ao DEUS DESCO-
NHECIDO.
Este fato nos é familiar pela narração de Lucas nos Atos
dos Apóstolos, e inteiramente confirmado por escritores
pagãos O espírito do apóstolo Paulo sentia-se comovido em si
mesmo, vendo a cidade de Atenas "toda entregue à idolatria"
(5), e no seu discurso no Areópago Ateniense, disse: "Indo
passando, e vendo os vossos simulacros, achei também um
altar em que se achava esta letra: AO DEUS
DESCONHECIDO" (6).
O que havia em Atenas havia também em Roma, a capital
do mundo, pois nos é dito, pela autoridade de Minúcio Félix,
que construíam altares a divindades desconhecidas. Tal era
então a natureza politeísta do sistema pagão.
Falemos agora um pouco do caráter destes deuses, e da
natureza do culto que lhes era prestado. Não crime, por
mais abominável que seja, que não lhes pudesse ser imputado.
O seu caráter pode resumir-se nestes versos do poeta Pope:
"Deuses injustos, mutáveis, iracundos, Só na
vingança e podridão fecundos".
O que eram os deuses, era o sistema com o qual estavam
identificados; eram os efeitos sobre seus adeptos. Julguemos
esse sistema pelas próprias bocas dos pagãos:
Aristóteles (7) aconselha que as estátuas e pinturas dos
deuses não deveriam exibir cenas indecentes, exceto nos
templos das divindades que presidiam a sensualidade. Como
não deveriam estar as coisas, para ser necessário tal
conselho? E qual o estado de espírito de um pagão esclarecido
que podia justificar tal exceção!
(4) Luciano, no seu
Philopatris
emprega esta forma de juramento: "Juro pelo
Deus Desconhecido
de Atenas". Mais adiante (cap. 29.180). diz: "Achamos o
Deus Desconhecido
em Atenas e
adoramo-lo com as os erguidas para o Céu". Podíamos ainda citar os autores Philostrato,
Pausanias, Petrónio, Diógenes Laercio. e outros, mas estes devem bastar.
(5) Atos 17.16.
(6) Atos 17.23.
(7) Política,
VI, 18, ed. de Schneider.
Petrônio informa-nos que os templos eram freqüentados,
os altares eram enfeitados e as orações eram oferecidas aos
deuses, para que eles tornassem mais agradáveis os vícios
desnaturados dos seus venerados.
O honesto Sêneca (8), revoltado contra o que presenciava
ao redor de si, exclama: "Quão grande é a loucura dos
homens! Balbuciam as mais abomináveis orações, e, se al-
guém se aproxima, calam-se logo; o
que um homem não
deveria ouvir eles não se envergonhavam de dizer aos deu-
ses".
Ainda mais: "Se alguém considera o que eles fazem e ao
que se sujeitam, em vez da decência, encontrará a indecência;
em vez da honra, a indignidade; em vez da razão, a
insensatez".
E, para completar o testemunho dos pagãos, quanto ao
caráter e efeitos do seu sistema, Platão declara: "0 homem
tem-se tornado mais baixo que o mais vil dos animais".
Bem podia o apóstolo Paulo, escrevendo aos romanos
durante o período a que nos referimos, usar a terrível lin-
guagem contida no lº capítulo da Epístola, pois tudo é
confirmado pelo testemunho de escritores pagãos. Bem podia
Paulo atribuir tudo ao sistema religioso de Roma e ao caráter
de seus deuses, e afirmar que era por isso que mudavam a
glória do Deus incorruptível em semelhança e figura do
homem corruptível, de aves, de quadrúpedes e de serpentes;
pelo que os entregou Deus aos desejos dos seus corações, à
imundície, pois o deram provas de que tivessem o
conhecimento de Deus. Foram entregues por Deus a um
sentimento depravado, para que fizessem coisas que não
convém; cheios de iniqüidade, de malícia, de imoralidade, de
avareza, de maldade, de inveja, de contendas, de engano, de
malignidade; tornaram-se homicidas, mexeriqueiros,
murmuradores, aborrecidos de Deus, contumeliosos, soberbos,
altivos, inventores de males, desobedientes a seus pais,
insipientes, imodestos, sem benevolência, sem palavra, sem
misericórdia (9).
Bastaria citar este trecho de Paulo para provar a nossa
tese. Porém, como pode ser que haja alguns que não inves-
(8) Citado na
Influência do Paganismo
de Tholuck.
(9) Romanos, 1,23,24,28 a 31.
tigaram a irrespondível evidência em que se baseia a au-
tenticidade dos escritos inspirados, julgamos útil apresentar
aos leitores o testemunho combinado, o pagão e o cristão.
Pedimos lerem com atenção o capítulo citado; ajudará a
apreciar o contraste que será apresentado num capítulo
subseqüente.
Quanto ao caráter dos antigos ídolos pagãos, fora dos li-
mites do Império Romano, não temos tantas informações;
existe, porém, evidência suficiente para provar que o paga-
nismo oriental era tão vil e degradante como o da Grécia e de
Roma, sem se ter até agora alterado profundamente. Podemos
estudá-lo pela observação atual. Citarei somente uma
passagem: um documento público apresentado ao Parlamento
por um magistrado de Bengala Meridional, na índia (,0), fala
da adoração da deusa Kalé, dizendo: "O assassino, o ladrão e
a prostituta, todos aspiram a propiciar um deus cujo culto
seja a obscenidade e que se deleite no sangue do homem e dos
animais, e a quem possam implorar auxílio para cometerem
os seus crimes".
Havia, sem dúvida, exceções a esta regra quanto aos
atributos dos deuses pagãos. Algumas daquelas divindades
personificavam virtudes; havia homens melhores do que o
sistema que prevalecia. As exceções eram raras e sobressaem
nos anais da história com tanto brilho quanto à sua raridade.
Estes homens excepcionais eram virtuosos em razão da luz
ainda não extinta na sua natureza decaída; eram virtuosos
apesar do seu sistema religioso e não por causa dele. Dionísio
de Halicarnasso diz: "Há
somente uns poucos
que chegaram a
ser mestres de filosofia; por outro lado, a grande e ignorante
massa popular está mais propensa a encarar essas narrativas
(as vidas dos deuses) pelo lado pior e a desprezar os deuses
como seres que se transformam nas mais crassas
abominações, ou a não temer praticar as maiores baixezas,
crendo que os deuses as praticam também” (11).
(10) A. Oakley, citado na
Filosofia do Plano da Salvação.
17
Tais eram os deuses do paganismo e tais os efeitos naturais do
seu caráter sobre os seus devotos.
Observamos que o sistema pagão como o judaico era
sacerdotal,
administrado por um sacerdócio. Entre os pagãos,
o sacerdote, que podia ser homem ou mulher, era o mediador
entre o povo e as divindades: a elas oferecia orações e fazia
sacrifícios. Em nome delas interpretava sinais, oferecia
presságios e revelava a vontade dos deuses, além de exercer
certas funções judiciais.
O culto consistia na prática de certos
atos ou ritos exte-
riores.
Era, por outras palavras, exclusivamente externo ou
cerimonial.
Não existe uma única prova
de que ensinassem a
moral (12). Os ritos compreendiam sacrifícios, ofertas, orações,
incensos, peregrinações a lugares santos ou relicários;
procissões em honra dos deuses; jejuns, abstinências,
mortificações, penitências, observância de festas e fre-
qüentemente práticas viciosas, como as acima referidas.
Esses ritos eram custosos, exigindo sacrifício da parte dos
que os seguiam, conforme a posição de cada um. Os seus
benefícios aproveitavam mais aos ricos que aos pobres. Não
eram, na maioria das vezes, abominavelmente impuros, mas
também barbaramente cruéis. Acerca da
(11) absolutamente impossível descrever detalhadamente as terríveis depravações do velho
mundo pagão. No dizer do Apóstolo, 'é vergonha mesmo o falar daquelas coisas que faziam
em secreto'. O leitor náo deve precisar que lhe digamos toda a miséria moral duma religião
cujos deuses eram debochados, bêbedos. fatricidas. prostitutos e assassinos e cujos templos
eram lupanares e antros dos piores vícios, chegando alguns a serem tolerados fora das
cidades (Vitruvio. I. 7). Seus espetáculos - as horríveis pugnas de gladiadores e cenas tão
impuras - o Catão casemeiro não podia presenciar. Suas procissões eram cortejos de
indecências. Seus altares náo raro se tingiam de sangue humano. Suas festas, as célebres
bacanais e saturnais; cujo ritual era o vício, e cujos sacerdotes e sacerdotizas... (temos de
descer um véu para esconder suas simples funções sacerdotais). No tempo de Augusto, o
casamento tinha caído em desuso. Se existia, era apenas para tornar a mulher escrava. A es-
posa tinha de trabalhar, as concubinas e cortezãs é que eram as
amigas
do seu
senhor.
Mas
tudo isto não é ainda o mais negro do quadro. Não um único dos vícios que provocaram a
extinção dos cananeus ou que fizeram vir do Céu o fogo vingador sobre as cidades da planície,
que não suje o retrato, que a história registra de quase todos os imperadores, estadistas,
poetas e filósofos da Roma Antiga e da Grécia clássica. A lepra moral corrompia tudo e a
todos. A crueldade campeava tanto quanto a sensualidade. A escravatura era universal.
Sócrates era uma exceção."
A Igreja Livre da Antigüidade,
por Basilio H. Cooper, p.31 e 32.
(12) Ver no
Dicionário de Antigüidades
do Dr. Smith o tópico
Sacerdotes.
imoralidade das cerimônias é impossível falar. Mas mesmo
que fossem descritos, não seriam acreditadas, se não fizessem
longas citações de historiadores autorizados.
Afirme-se desde que o Cristianismo baniu o conhe-
cimento dos vícios cometidos publicamente nessa época, cios
que não somente não produziam o descrédito daqueles que os
praticavam, mas que faziam parte dos seus ritos religiosos e
que, em alguns casos, eram obrigatórios e noutros, tidos como
honrosos e meritórios. É uma bênção serem agora mortas as
línguas em que essas coisas foram escritas! Mas, não devemos
esquecer as lições que elas nos ensinam.
Dissemos que os ritos pagãos eram muitas vezes barba-
ramente cruéis. Referiamo-nos principalmente à prática de
oferecer sacrifícios humanos:
e essa prática, segundo a
história antiga, parece ter sido universal. Não é conhecida a
data em que essa abominação foi introduzida, mas, sem
dúvida, foi pouco depois do princípio do mundo. Os cananeus,
3300 anos, a praticavam, oferecendo seus filhos aos ídolos
de Canaã,especialmente a Moloque (13). Foi evidentemente este
um dos crimes pelos quais o Todo-poderoso mandou destruir
aquele povo: "Não darás nenhum de teus filhos para ser
consagrado ao ídolo Moloque... porque todas estas execrações
cometeram os habitantes desta terra, que foram antes de vós,
e com elas a contaminaram. Vede, pois, não suceda... como ela
vomitou a gente que houve antes de vós, vos vomite também a
vós, se fizerdes outro tanto" (14).
É necessário explicar que a expressão usada nas
nossas Bíblias, "consagrar os filhos ao ídolo Moloque quer
dizer queimar as crianças em honra dessa divindade (15).
Sobre este ponto não dúvida. Moloque, Moleque, Malcom
ou Milcom, como chamado, era o planeta Saturno divinizado.
O seu culto existia principalmente entre os primitivos habi-
tantes de Canaã, e entre os amonitas, fenícios e cartagineses
(13) Deuteronômio 18.9,10.
(14) Levítico 18.21,27,28.
(15) Compare Deuteronômio 12.31: 18.10. com Salmos 106.38: Jeremias 7.31; 19.5: Ezequiel
16.20,21; Atos 7.43.
19
O ídolo consistia numa estátua de latão, sob a forma de
homem com cabeça de touro; tinha os braços estendidos para
a frente, um pouco abaixados. Os pais colocavam seus filhos
nas mãos do ídolo. Dali a criança caía numa fornalha onde
morria queimada. Durante a cerimônia, tocavam tambores e
trombetas para abafar os gritos dos inocentes. Algumas vezes
o ídolo era oco. Aquecido até ao rubro por fogo colocado
dentro, as crianças eram então queimadas nas mãos em brasa
da estátua.
Apesar de ter o Todo-poderoso proibido expressamente
esses crimes, os judeus praticaram-no por vezes, espe-
cialmente nos reinados de Acaz e de Manasses. Erigiram o
ídolo no vale ao sul de Jerusalém, chamado Enon, mais tarde
denominado Tofete ou Tambores em conseqüência da prática
dessa abominação, e em referência aos tambores que tocavam
para sufocar os gritos das vítimas (16). Mais tarde, o lugar veio
a ser tão aborrecido pelos judeus, que deram a ele o nome de
"Ge-hinnon" ou Geena, lugar de castigo na vida futura, isto é,
o Inferno. De maneira que, na opinião destes judeus, bastava
praticar tais abominações pagas para fazer da terra um
inferno (17).
Continuemos a indagar da prática de
sacrifícios humanos.
Principiemos pelos gregos civilizados e filósofos. Agamenon,
rei de Micenas, ofereceu sua filha Efigênia, a fim de obter
uma brisa favorável para poder atravessar um mar mais
estreito que o Canal da Mancha; e, na sua volta, ainda
ofereceu outro sacrifício humano. Os atenienses e os
massalianos ofereciam anualmente um homem a Netuno.
Menelau, rei de Esparta, sendo detido por ventos contrários,
ofereceu duas crianças egípcias. A história relata-nos que
muitos dos estados gregos ofereciam vítimas humanas antes
de empreenderem uma expedição ou guerra. Em Rodes
ofereciam um homem a Crono, deus semelhante a Moloque,
no dia 6 de julho de cada ano; em Salamina, ofereciam
também um homem em março de cada ano; em Chios e
Tenedos despedaçavam anualmente uma vítima
(16) Isaías 30.33; Jeremias 7.31,32: e 19.4-14.
(17) Deodoro Sículo, XX, 24; Eusébio, Praep. Evang.. IV. 16.
OI
humana. Na Ática, Ereteu sacrificou sua filha; Aristides
sacrificou três sobrinhos do rei da Pérsia; Temístocles
sacrificou várias pessoas nobres. Note bem! estes homens não
eram selvagens, mas tidos em seus dias como sábios, justos e
bons.
Na Tessália, ofereciam-se sacrifícios humanos; os
palagianos, em tempo de escassez, ofereciam a
décima parte
de seus filhos;
na Crimeia e no Tauro,
cada naufrágio estran-
geiro,
em vez de ser recebido com hospitalidade, era sacri-
ficado a Diana. 0 templo desta deusa em Arícia, era sempre
servido por um sacerdote, que tinha matado o seu antecessor;
e os lacedemônios anualmente ofereciam vítimas humanas a
Diana até o tempo de Licurgo, que mudou esse costume pelo
açoite. No entanto, as crianças eram muitas vezes flageladas
até morrer.
Passemos agora dos gregos e seus vizinhos para o império
de Roma. A história nos informa que, embora não tão
freqüentemente, houve sacrifícios humanos por muitos e
muitos anos.
Em Roma, era costume sacrificar anualmente trinta
homens, atirando-os ao Tibre, para obter o progresso da ci-
dade. Tito Lívio menciona que dois homens e duas mulheres
foram enterrados vivos para evitar calamidades públicas.
Plutarco descreve um sacrifício semelhante; e Caio Mário
ofereceu sua filha Calpúrnia para ser bem sucedido numa
expedição contra os címbricos. É verdade que no ano 96 a.C.
foi publicada uma lei para sustar essas práticas, o que prova
que o costume existia. Além disso, o sacerdote pagão
mostrava-se muitas vezes mais forte que o magistrado civil,
de modo que, embora a lei tivesse sido promulgada, o costume
não foi abolido. Muitos casos de sacrifícios humanos são
mencionados até ao ano 300 da nossa era -quase 400 anos
depois da publicação da lei (18).
Da Grécia e de Roma passemos a outras nações antigas, e
indaguemos quais eram a este respeito as praticas do pa-
ganismo. Entre os habitantes de Tiro, o rei oferecia o filho
para obter prosperidade; pela Escritura Sagrada sabemos
(18) Citado na
Religião Genuína e Espúria
de Mühleisen. vol. II. cap. IV.
22
que os moabitas também tinham tal costume. Na ocasião da
derrota do rei de Moabe pelos exércitos aliados de Judá e
Israel, o rei de Moabe ofereceu em sacrifício seu filho pri-
mogênito, que havia de reinar depois dele. No tempo do Novo
Testamento, Pilatos misturou o sangue de certos galileus com
os seus sacrifícios.
Os cartagineses seguiram esse costume. Em ocasiões
extraordinárias, ofereciam multidões de vítimas humanas:
durante uma batalha entre sicilianos e cartagineses, estes, sob
o comando de Amílcar, ficaram no campo oferecendo sacrifícios
às divindades do seu país, e consumindo sobre uma grande
fogueira os corpos de numerosas vítimas (19). Outra vez,
quando Agatocles estava para sitiar Cartago, os seus
habitantes, temendo que suas desgraças fossem por causa da
ira de Saturno, por lhe terem oferecido somente filhos de
escravos e estrangeiros, em vez de crianças nobres,
sacrificaram duzentas crianças das melhores famílias, a fim de
propiciar a divindade ofendida. Trezentos cidadãos imolaram-
se voluntariamente na mesma ocasião (20). Doutra vez, para
celebrar uma vitória, o mesmo povo imolou os mais perfeitos e
mais formosos dos seus cativos, e as chamas da fogueira foram
tão grandes que lhes incendiaram o acampamento (21)
Tertuliano, escritor cristão, diz que sacrifícios humanos eram
comuns na Arcádia e em Cartago nos seus dias, isto é, no
terceiro século da era cristã.
Agora voltemos ao Oriente.
No Egito havia sacrifícios de vítimas humanas, cujas
cinzas eram espalhadas pelas terras para se conseguir a
fertilidade do solo; os escolhidos eram homens de cabelo ruivo.
Durante a dinastia dos Hiksos, conta Maneto que diariamente
eram sacrificadas três pessoas, isto é,
mais de mil por ano.
Entre os persas, sabemos que existia o mesmo costume.
Quando Anestris, mulher de Xerxes, chegou à
(19) Heródoto, VII, 167.
(20) Deodoro Século, XX, 14.
(21) Deodoro Século, XX, 56.
23
idade de 50 anos, como ação de graças aos deuses (22), en-
terraram
vivas 14 crianças.
Quanto aos assírios, não possuímos ainda informação
suficiente acerca da sua mitologia, para poder dizer com
certeza que os sacrifícios humanos formavam uma parte do
seu sistema religioso, mas as recentes descobertas em Nínive,
e o desvendamento da linguagem escrita dos assírios pelo
coronel Rawlinson e outros, indicam-nos que eles adoravam
deuses aos quais, em outros países, ofereciam sacrifícios
humanos (23). É evidente que os assírios não faziam exceção à
regra quanto à crueldade do paganismo, pois das decorações
de seus palácios reais fazem parte imagens representando o
esfolar pessoas vivas e outros atos atrozes de crueldade.
Falando dos indus e chineses, será mais útil citar as suas
práticas recentes, visto como poucos dos seus antigos escritos
chegaram até nós. Dos indus, mesmo sob o domínio europeu,
consta de documentos oficiais - os registros públicos de
Bengala - que, entre os anos de 1815 e 1824, 5997 viúvas
foram queimadas vivas. Tal crueldade ainda se pratica em
lugares muito interiorizados. Também era comum afogar e
enterrar pessoas vivas. Os chineses, em Tonkin, sacrificavam
crianças cortando-as ao meio ou envenenando-as; e em Laus,
quando fundavam um templo, a obra era cimentada com o
sangue do primeiro estrangeiro que por ali passasse. Também
atiravam as crianças aos rios como sacrifício oferecido às
águas.
Voltemos agora para o norte da Europa e vejamos quais os
costumes e práticas dos pagãos. Raras são as fontes de onde
podemos obter fatos, mas temos o suficiente para tirarmos
provas bastantes das práticas pagas em toda a sua hediondez.
Harold, rei saxônio, matou dois de seus filhos para obter uma
tempestade que fizesse naufragar a esquadra
(22) Além das autoridades citadas podem-se encontrar numerosos testemunhos, tirados de
autores clássicos, na
Introdução ao Novo Testamento,
de Harwood, na
Análise da Mitologia
Antiga,
de Bryant, etc.
(23) Esboços da História da Assíria,
de Rawlinson. As mesmas investigações revelam que
prevalecia o culto da deusa Milita, cujos ritos consistiam na mais revoltante obscenidade. O
mesmo pode-se dizer da Babilônia.
dos dinamarqueses. Na Rússia, ainda no século X, um homem
foi escolhido à sorte e sacrificado, a fim de aplacar a ira dos
deuses. Na Zelândia, sacrificavam anualmente 99 pessoas ao
deus Swan-to-wite. Na Dinamarca, era sacrificado o mesmo
número de homens. Os escandinavos sacrificavam todos os
cativos a Odim. Os sacerdotes eslavos não somente matavam
vítimas humanas como também bebiam o seu sangue.
O modo de destruir a vida diferia, mas o princípio era o
mesmo e parece ter sido universal. Os gauleses matavam com
um golpe de machado, dado de tal maneira que a vítima ainda
ficasse viva, para obterem presságios por meio das suas
convulsões. Os celtas colocavam as suas vítimas num altar e
abriam-lhes o peito com uma espada; os címbricos estripavam
as vítimas; os noruegueses tiravam-lhes fora os miolos com o
jugo de um boi. Os islandeses crivavam as timas de setas.
Na Bretanha, os druídas faziam uma figura de vime de forma
humana, que enchiam de vítimas e deitavam-lhe fogo, como
descreve César: "Alguns usam imagens enormes, cujos
membros são feitos de vime e cheios de criaturas vivas; pondo-
lhes fogo, as chamas destroem essas criaturas... Quando não
número suficiente de criminosos, não têm escrúpulo de
torturar os inocentes" (24).
Os pormenores não são revoltantes, mas enfadonhos.
Contudo, não se pode considerar completa esta parte do
assunto sem lançar a vista sobre países que podem ser clas-
sificados como da antigüidade, não obstante quase nada
sabermos da sua história antiga, porque a sua religião é, ou
era até pouco tempo, paga em todo o sentido. Esses estão,
especialmente na América, na África e nas ilhas do Pacífico.
No México parece que a brutalidade de sacrificar vítimas
humanas chegou ao máximo. Nenhum autor calcula o número
anual de vítimas em menos de 20.000 e alguns o elevam a
50.000. Em ocasiões solenes, o número de sacrificados chegava
a ser pavoroso. Na dedicação do grande templo
Huitzilopolchli, no ano de 1486,
(24) De Bello Gállico,
Livro VI.
os prisioneiros, que de longa data tinham sido reservados
para esse fim, dispostos em fileiras, formavam uma linha de
cerca de duas milhas de comprimento. A cerimônia durou
alguns dias, e diz-se que 70.000 homens foram mortos. Os
companheiros de Cortez, o conquistador do México, contaram
num dos templos 136.000 caveiras.
Quando perguntaram a Montezuma, último imperador do
México, por que razão consentia que a república de Tlascala
mantivesse a sua independência, respondeu que era para que
lhe fornecesse vítimas para os deuses" (25). No tempo da seca,
para propiciar Theloc, deus da chuva, as crianças eram
sacrificadas vestidas de roupas finas, e adornadas de flores de
primavera. Escritores narram que os gritos dessas inocentes,
quando levadas em liteiras para o lugar da matança,
comoveriam os corações mais duros. Mas não podiam comover
os corações duros dos sacerdotes pagãos, que, como os devotos
de Moloque, sufocavam os gritos das criancinhas com ruidosas
músicas e cantos. Estas vítimas inocentes eram geralmente
compradas pelos sacerdotes a seus pais pobres. E pais havia
que vendiam os seus filhos! Isto era a repetição do antigo
paganismo (26).
"Sem benevolência, sem misericórdia",
é
realmente a justa qualificação dada pelo apóstolo inspirado. A
tribo Fanti e muitas outras da África ofereciam sacrifícios
humanos em cada lua nova. Em Assanti, a adoração de
tubarões e cobras era acompanhada de sacrifícios humanos em
suas formas mais pavorosas (27). Um rei ali deu instruções para
o morticínio de 6.000 escravos no seu funeral, e o seu testa-
mento hediondo foi executado. Essa prática existia em todas
as ilhas do Pacífico. Em Otaeite, grande mero de pessoas
foram mortas, depois de lhes tirarem os olhos, para os
oferecerem ao rei. Nas ilhas Marquesas, principalmente nas
ilhas Harvey e Pallisay, e nas da Nova Zelândia, não somente
sacrificavam os seus inimigos, mas
devoravam-nos.
(25) A Conquista do México,
de Prescott.
(26) A Religião Genuína e Espúria,
Mühleisen. vol.II. p.299.
(27) A África Ocidental,
de Hutchinson.
Não forma parte deste livro indagar por que a prática de
sacrifícios, particularmente de sacrifícios humanos, se
generalizou. Basta observar que não prática alguma do
paganismo para a qual não se encontre um fundamento de
verdade. Assim, os sacrifícios oferecidos pelos judeus ou pelos
pagãos, evidenciavam três grandes verdades. Primeira, que o
homem tinha ofendido o seu Deus; segunda, que alguma
expiação devia ser oferecida, ou alguma compensação feita
para satisfazer a lei ofendida; terceira, que bastaria uma
expiação substitutiva - isto é, que uma vítima inocente fosse
oferecida em lugar do pecador.
Estas idéias parecem ter existido universalmente; não
praticamente região no mundo onde não se encontrem. Sem
dúvida, derivam da revelação divina feita ao homem no
princípio da sua existência, como o método destinado a efetuar
a reconciliação entre o homem decaído e o seu Criador
ofendido. A verdade, porém, corrompeu-se, mas a consciência
humana despertando incessantemente seus temores
criminosos, evitou que a idéia se perdesse de todo. Sentindo a
necessidade de um sacrifício de valor, e perdendo de vista o
sacrifício perfeito que Deus prometera preparar, o homem
buscou no sacrifício da vida humana um sacrifício adequado à
sua culpa, e, assim, espalhou a prática de sacrificar "o fruto do
corpo pelo pecado da alma".
Não é, contudo, a origem das idéias pagas, mas o estado do
mundo pagão, que estamos desenvolvendo. Se tais eram os
ritos religiosos, qual seria a condição social e moral dos pagãos
no período que estamos considerando?! A voz da história, se a
ouvirmos atentamente, mesmo descontando os excessos das
hipérboles e as inexatidões históricas, assegura-nos que a
condição social do povo era extremamente miserável e
rebaixada. O infanticídio predominava quase tão
universalmente como as práticas a que aludimos. Não
somente em países bárbaros, mas na culta Grécia e na
civilizada Roma.
Entre os atenienses e gauleses, as leis autorizavam os pais
a destruírem os filhos. Em Esparta, as leis de Licurgo
obrigavam o pai a levar os filhos perante uma comissão
examinadora; se esta os achasse desfigurados ou fracos,
eram lançados numa caverna profunda, perto do monte
Taigeto. Aristóteles diz: necessário expor (isto é, deixar
morrer) crianças fracas e doentes, para evitar um aumento
demasiado rápido de cidadãos". Platão, na sua
República,
diz
que as crianças fracas não devem ver a luz. Também em
Roma, as leis davam autoridade aos pais para tirarem a vida
de seus filhos. Erixo e Ário, cidadãos romanos, mataram cada
um seu filho a pancadas (28)e Tertuliano afirma que os
romanos expunham seus filhos, à morte, afogando-os ou
deixando-os perecer à fome ou, devorados pelos cães. cero e
Sêneca falam dessas práticas; tratam-nas, porém, como
corriqueiras: não as censuram nem as comentam. Terêncio
descreve um certo Cremes como "um homem de grande
benevolência" e no entanto apresenta-o ordenando à sua
mulher que matasse seu filho recém-nascido. E mostra que
Cremes encolerizou-se por ter a esposa encarregado outra
pessoa de executar o ato (29).
Citemos o testemunho do escritor Gibeon. Este teste-
munho é tanto mais valioso quanto é certo que ele se esforçou
por pintar o paganismo com belas cores para prejuízo do
cristianismo. Diz: "O costume de matar crianças era o
vício
obstinado e predominante da antigüidade;
às vezes
(28) Sêneca,
De Clemência,
1,4,15.
(29) Mulhleisen, II, cap.4. O morticínio de crianças, principalmente meninas, é assim descrito por
um escritor moderno. Tomaz Bacon, autor do livro
Estudos do Natural no Hindustão,
num
trabalho sobre Benares, publicado no
Anuário Oriental para 1839,
p.92: "O revoltante crime
de infanticídio era antigamente praticado em grande escala em Benares e distritos
adjacentes, e, segundo atestam-no os próprios muçulmanos, ainda hoje se pratica, apesar de
todas as medidas proibitivas tomadas pelo Governo. Havia povos onde não escapava uma
única criança do sexo feminino, que eles destruíam sem o menor sentimento de pecado ou
crueldade. Parece que o costume tinha a sua origem no interesse, para evitarem as grandes
despesas com o casamento das filhas. A sua crença era que as almas das filhas que
trucidavam voltavam nas pessoas de filhos, que esperavam lhe nascessem. Se não nasciam,
então era porque Siva, o seu deus, estava descontente, e tratavam de o propiciar até que um
filho lhes viesse. Um dos meios de propiciação era entregar uma outra filha nas mãos dos
bramas, seus sacerdotes, que a sacrificavam solenemente. Desse costume é fácil adivinhar a
origem, quando se sabe que, com cada filha para ser sacrificada, devia ir um bom presente
para os sacerdotes. O processo caseiro de destruição era o que os hindus chamavam o
banho
de leite.
Logo ao nascer, se a criança era menina, traziam para o quarto da mãe um caldeirão
de leite quente, e depois de várias orações para que a alma da pequena voltasse num menino,
a inocente era afogada no leite e depois de morta lançada ao Ganges. Nos templos, a
destruição era feita pondo a criança de costas e, depois de cerimônias diabólicas dedicadas à
deusa medianeira Genesa, era morta a cacetadas por qualquer
fakir
desumano, e ao som de
bombos especiais.
era imposto, outras permitido e sempre impunemente, ainda
mesmo em nações que nunca admitiram as idéias romanas do
poder paternal". Os poetas dramáticos, que às vezes apelam
para o coração humano, representam com indiferença aquele
costume popular, que era seguido por motivos de economia
(™).
Vejamos agora qual era a condição social da mulher no
paganismo. Em toda a parte a mulher era considerada como
inferior ao homem. No Hindustão, na China e nos mares do
Sul, por essa razão, ainda pouco destruíam crianças do
sexo feminino. Em Bengala suspendiam as meninas recém-
nascidas nos ramos das árvores em cestas, e assim pereciam
comidas pelas formigas, moscas e aves
de rapina. Tal era a condição do sexo feminino na infância. Se
sobrevivesse a mulher era levada a um ínfimo ponto.
Aristóteles escreve: "As mulheres são uma espécie de
monstros - o começo da degeneração da nossa natureza".
A poligamia, isto é, o costume de ter muitas mulheres a
um tempo, ainda que proibida pelas leis de alguns países, era
quase universal. Não necessidade de demonstrar que tal
prática é evidentemente contrária à natureza, que
igualdade quase absoluta a ambos os sexos. Nem tão pouco é
preciso dizer que é uma prática degradante para a mulher,
pois trata-a como se fosse incapaz da afeição que tanto
distingue o seu sexo.
(30) Gibbon, no seu livro:
Decadência e Queda do império Romano,
descreve assim a situação
das crianças no direito romano: "Na casa paterna, os filhos são meras coisas". Confundidos
pela lei com os objetos semoventes. como o gado e os escravos, que o
dono
podia alienar ou
destruir, sem a menor responsabilidade perante qualquer tribunal, os pais podiam a seu
talante, castigar os filhos pelas suas faltas reais ou imaginárias, com açoites, com prisão, com
o exílio ou com a morte. "O exemplo de execuções sangrentas, muitas vezes louvadas e nunca
condenadas, encontra-se nos anais de Roma depois de Pompéia e de Augusto" (cap.44.
p.368). Tal é o testemunho de um inimigo do Cristianismo sobre o paganismo. Mas é curioso
notar como ele mesmo indiretamente presta homenagem à influência benéfica do
Cristianismo quando diz: "O Império Romano esteve manchado com o sangue dos infantes até
que tais práticas foram consideradas crime por Valenciano. no código Comeliano" (p.371). Isto
foi cerca do ano 438, depois do triunfo do Cristianismo.
Um exemplo do tratamento das crianças, no auge da civilização romana, pode ver-se na
execução de Sejano, no tempo de Tibério. Os filhos de Sejano. um menino e uma menina,
novos demais para poderem ter qualquer parte no seu crime, foram condenados a morrer com
ele. A menina, na sua simplicidade infantil, perguntou o que tinha feito, mas nem a idade,
nem o sexo. nem a inocência lhe valeram. Segundo o maldito costume da época, foi primeiro
violentada
e depois morta. (A República Romana, de Fergusson, vol.5, p.354).
A mulher era definida pelas leis de Roma,
não como
pessoa, mas como coisa
e, se faltasse o título da sua posse,
poderia reclamar-se como quaisquer móveis (31)
- Era tratada
como escrava do homem e não como sua companheira e amiga;
era comprada, vendida, trocada, desposada, casada,
divorciada e separada de seus filhos, sem seu consentimento;
muitas vezes sem misericórdia; à vontade do capricho de seu
senhor. Ele podia legalmente matá-la, ainda que fosse por ter
provado do seu vinho ou por ter usado suas chaves (32).
Não deixará de ser proveitoso prestar atenção ao teste-
munho vivo de um que estudou a condição da mulher debaixo
da influência do paganismo moderno "Verdadeiramente",
disse o Dr. Vidal, "a vida de uma mulher indiana, desde o
berço até a sepultura é de miséria. Quem não tem ouvido a
narração triste e comovedora da menina, criança e
desposada com um homem que não tem interesse por ela e
sobre quem ela somente lança olhares de terror?! Desde o dia
do seu infantil casamento, é obrigada a ser uma pobre
escrava, vil e deprimida, servindo ao seu senhor com
submissão e silêncio; cumprindo toda a vontade dele, sem
ouvir uma única palavra de agradecimento; sem conforto, e,
naquele dia terrível, quando a morte arrebatar o seu tirano,
está obrigada a ser
queimada com ele,
como holocausto vivo;
ou a ser enterrada viva ao seu lado na sepultura! (34).
"Ou, ainda: Não ouvimos nós também falar das filhas da
índia, que, pondo de lado o sentimento e ternura femininas,
seguem o culto satânico de
Peyadi,
com todas as suas
horríveis práticas, bebendo o sangue das vítimas até a
intoxicação e dançando em roda em louco frenesim,
(31) Decadência e Queda do Império Romano,
de Gibbon. cap. 44. p.373. (32) Plínio,
História Natural, XIV,
14; Plutarco, p.57.
(33) Discurso a favor da Sociedade Promotora da Educação Feminina no Oriente, pelo Dr. Vidal.
(34) Entre os anos de 1815-1820 chegaram ao conhecimento do Governo de Bengala nada menos
de 62 casos de meninas de menos de dezoito anos, que foram assim cruelmente destruídas. As
idades destas pobres meninas eram as seguintes: 14 tinham dezessete; 1 tinha dezesseis e
meio: 22 tinham dezesseis: 6 tinham quinze: 2 tinham catorze; 2 tinham treze; 10 tinham
doze; 1 tinha dez e 3 somente oito. Este costume bárbaro foi abolido só no ano 1830.
o o
até caírem ao chão exaustas? Desgraçadas, são vítimas das
suas próprias imaginações ferozes e terríveis e daquele mau
espírito a quem se dedicam. Quando uma delas é interrogada
a respeito da sua alma, a resposta ignara é: - Minha alma!
Que alma tenho eu? Eu sou apenas uma mulher.
"Voltemo-nos para o Oriente, para as multidões compactas
da China. Como se trata a mulher? Oh! que história de
pesar revela esse simples fato que descobrimos logo à
chegada; que nos impressiona desde o momento em que pomos
os pés em terra! Referimo-nos ao terrível costume do
infanticídio feminino, em razão do qual a menina recém-
nascida é logo condenada à morte, assassinada sem
compaixão, como se isso fosse uma necessidade inevitável
devido ao seu sexo!
Na China é considerado uma desgraça o
ser pai de uma menina.
Onde metade das meninas são
vítimas desse terrível costume, o que se pode esperar com
referência à sorte das sobreviventes?! Assim rebaixada,
desprezada, considerada imprópria para a vida, uma ver-
gonha e ignomínia para a família, da qual ela deveria ser o
ornato e a honra, a chinesa bem pode ser descrita juntando os
seus lamentos aos das suas irmãs maometanas da índia". (*)
Poderíamos enfadar os leitores com narrações de cruel-
dade e derramamento de sangue, frutos da noção paga da
posição social da mulher. Porém cremos que foi dito o
bastante para provar que a mulher pelo menos, tem ganho
muito desde que foi libertada, pelo cristianismo, da influência
do paganismo. Talvez imaginem que temos falado da
miséria das crianças e das mulheres sob a influência do
paganismo, mas também temos algo a dizer quanto à condição
social e moral da sociedade. Isso será o assunto no capítulo
seguinte.
(*) Essa descrição data da época em que o livro foi escrito - 1883. (N.R.)
2
A Sociedade sob a influência
do Paganismo
"Eles são cruéis e não usarão de misericórdia",
Jeremias 6.23.
Em todas as pinturas pontos que atraem a nossa
atenção pela maneira como se salientam. Assim é quanto à
pintura que a história e a literatura nos deixaram do paga-
nismo. Ao começarmos a análise, ficamos surpreendidos com
os atos isolados de crueldade ou injustiça para com certas
classes e, particularmente, para com os desamparados.
Continuando a estudar e a refletir, ficamos impressionados
com a depravação geral, mísera degradação e degeneração da
sociedade, desde o imperador ao escravo. Raciocinando sobre a
matéria, chegamos à conclusão evidente de que, se todas as
classes e ambos os sexos não se tivessem igualmente
degenerado, um protesto indignado de alguma classe se teria
levantado por cima dos clamores de miséria e denunciado
aquelas orgias e devassidões.
Mão são precisos fatos para justificar o que acima ficou
dito. Portanto, forneceremos alguns casos que podem dar
testemunho esmagador; primeiro referentes aos governantes,
depois aos homens livres, e, finalmente, aos escravos.
A história da vida dos imperadores romanos, de suas
famílias e parentes, com poucas, e, portanto, notáveis
exceções, expõe todos os vícios, que a natureza decaída é capaz
de praticar. O livro que publicasse a biografia desses
pervertidos, suas páginas seriam enegrecidas. Como esses
imperadores eram elevados ao trono por eleição popular, a
moral deles refletia a própria moral do povo.
Vejamos alguns atos dos maiores Césares.
Júlio César, o feliz soldado e talentoso general, matou na
guerra, principalmente para seu benefício pessoal e satisfação
da sua ambição desordenada, mais de um milhão e cem mil
homens (1), e corrompeu, segundo declaração de um célebre
historiador, metade das senhoras de posição e influência de
Roma. "César", diz ele, "que matava os agentes de seus crimes
se eles falhassem em destreza; César, o amanate de cada
mulher... é tido como grande homem por uma multidão de
escritores. Os talentos deste homem singular e a boa fortuna
que constantemente o bafejou até o momento do seu
assassinato, encobriram a hediondez de suas ações (2).
César Augusto, um dos melhores imperadores, era réu de
adultério covarde e de vergonhosa libertinagem; a sua única
filha, Júlia, tornou-se infame pela sua conduta e foi banida
por seu pai, que lhe havia dado o exemplo.
Tibério, que sucedeu a Augusto, foi o símbolo de crueldade,
intemperança e devassidão. Não somente os seus parentes e
amigos, mas também os grandes e opulentos membros da
aristocracia, foram sacrificados à sua ambição, atrocidade e
avareza. Quase que não havia em Roma uma família que
não o amaldiçoasse pela perda de um irmão, pai ou marido.
Finalmente retirou-se para a ilha de Cáprea, na costa da
Campânia, onde mergulhou em prazeres
(1) Biografia Universal,
de Platt, vol.1, p.651.
(2) Ophellet,
Mélanges Philosophiques.
repugnantes. No seu retiro solitário propôs recompensas aos
que inventassem novos prazeres ou pudessem produzir a
volúpia. Arruinou-se pela prática de vícios contrários à
natureza e que fariam corar o mais depravado mortal. A sua
intemperança era tal, que Sêneca, espirituosa-mente, observa
que "ele nunca se embebedou senão uma vez na vida,
porque continuou num estado perpétuo de embriaguez desde o
dia em que se entregou ao vício de beber até o último
momento da sua existência".
Apesar de tudo isso, Tibério, como seus predecessores
Júlio e Augusto, e muitos dos seus sucessores, foram, depois
de mortos, elevados à dignidade de deuses e adorados como
divindades em Roma. Se tais eram os vossos deuses, ó
cidadãos romanos, em que condições estaríeis?!
Calígula, o imperador que se seguiu, cometeu atos de
impiedade, crueldade e extravagância atrocíssimos. Começou
a carreira da perversidade matando alguns parentes, alguns
senadores e pessoas de posição. Descaradamente, casou-se
com a sua própria irmã Drusila; e, na morte dela, ordenou que
se lhe prestassem honras divinas em templos construídos
especialmente para ela. Para um cavalo favorito que ele tinha,
erigiu um palácio com uma cocheira de mármore e com as
grades da mangedoura de marfim. Alimentava esse animal
com cevada dourada numa vasilha de ouro. Introduzia no
templo esse cavalo, paramentado de sacerdote de piter, e
ordenou que oferecessem sacrifícios a si, à sua mulher e ao
seu cavalo. Casou-se com várias mulheres, que ia
abandonando uma após outra. A crueldade veio a ser nele um
hábito. Certa ocasião deu ordens para um assassinato, com as
seguintes palavras: "Feri-o de tal maneira que ele possa sentir
a presença da morte". Noutra ocasião exclamou: "Oxalá que o
povo romano tivesse somente uma cabeça, que eu pudesse
cortar de uma só vez". Parece, como observa Sêneca, que ele
foi trazido pela natureza com o fim especial de mostrar quanto
mal poderia ser executado pela depravação suportada pelos
mais altos poderes (3).
(3) Biografia Universal,
de Platt. vol.2, p.10.
Cláudio, evidentemente pela natureza de uma disposição
fraca e inofensiva, começou o seu reinado de maneira a
reparar, em parte, o caráter da sua classe; porém sua mulher,
Messalina, fornece-nos uma ilustração da condição social e
moral da aristocracia daquele tempo. Ela completou o que
faltava ao imperador. O nome Messalina ficou infamado e
representa tudo que de mais baixo no seu sexo. Não era
menos notória pela crueldade, que pela influência sobre o
imperador, e pelos atos que praticava em nome dele.
Conseguiu a morte de Áppio Silano, que se havia casado com a
sogra do imperador, a de Silano e a de Pompeu, seus genros; e
de suas duas sobrinhas, as Lívias. Suetônio também informa-
nos que Cláudio mandou executar trinta e cinco senadores e
mais de trezentos cavaleiros.
O acontecimento mais extraordinário do seu tempo foi o
casamento público de Messalina, a imperatriz, com um jovem
nobre chamado Sílio, à beira-mar, durante a ausência
temporária do imperador. Aquela mulher depravada,
descontente com a ostentação descarada da sua afeição pelo
amante, resolvera, por este modo, mostrar o seu desdém por
todas as exigências sociais. Casaram-se à vista da cidade
inteira, com todas as cerimônias imperiais de costume. Qual
não seria a condição moral do povo que podia, com aplauso e
sem protesto, presenciar tal conduta nos primeiros lugares da
sociedade? Messalina foi executada, casando-se o imperador
com sua sobrinha, que se esforçou por imitar a conduta da tia,
e assim envenenou o marido imperial (4).
Nero sucedeu a Cláudio. Basta o nome
Nero
para com-
pletar o catálogo. Parece ter alcançado uma evidência nunca
excedida em tudo que é abominável à natureza humana. À
noite, freqüentava, disfarçado, todos os lugares de
libertinagem que havia em Roma; representava publicamente
nos teatros; em estado de nudez batia-se nos jogos públicos, e,
perante a multidão dos espectadores, praticava as maiores
obscenidades concelúveis, mas não descritíveis. Mandou
incendiar diversos bairros de Roma, e,
(4) Platt, obra citada, vol.2, p.4.
durante alguns dias, regozijou-se com o terrível espetáculo a
que a sua barbaridade atroz tinha dado lugar, tocando em
uma lira e cantando, no alto do seu palácio, a destruição de
Tróia. Para cúmulo da sua selvageria, tendo falhado um plano
desse monstro para afogar a própria mãe, mandou assassiná-
la (5).
Tais foram os principais imperadores de Roma. A con-
tinuação deste inquérito seria muito fastidiosa, e o resultado
seria o mesmo. Ainda que um Tito, um Nerva e um Trajano se
levantassem, em intervalos, para variar a história, aparece
também um Domiciano, insistindo em ser intitulado
deus,
porém dado ao incesto e a matar moscas; um Cômodo, que
desonrou suas irmãs e cortou os narizes aos seus cortesãos,
sob pretexto de fazer-lhes a barba; um Caracala, que
assassinou a mulher e o próprio irmão nos braços da mãe, e
um Heliogábalo, que escolheu um senado de mulheres
ordinárias, e elevou o seu cavalo à dignidade de cônsul. Esses
confirmam as nossas declarações sobre a condição moral e
social dos que tinham as rédeas do governo de Roma.
O que está dito idéia da condição geral daquela so-
ciedade. Os romanos, como povo, deveriam estar extraor-
dinariamente corrompidos para serem incapazes de se pro-
tegerem da tirania e de vícios tão detestáveis, exercidos pelos
seus imperadores. a extrema degeneração do povo poderia
privá-lo de todos os princípios de moral e de sentimentos sãos,
para suportarem tais excessos do poder absoluto. Onde houver
uma opinião pública generosa e viril, geralmente haverá
respeito às leis sociais, pelas exigências da decência, mesmo
em estados não tão livres como o era a Roma antiga.
O estado moral de um povo pode ser convenientemente
avaliado pelo modo como passa as suas horas de recreio, e pelo
caráter das diversões que são do gosto popular. A este respeito
a história nos oferece evidências abundantes sobre a
moralidade aviltante do povo romano. Os seus divertimentos
consistiam principalmente em jogos públicos, realizados nos
espaçosos coliseus, sempre acompanhados de
(5) Platt, obra citada, vol.l, p.717. etc. vol.2. pp.10 e 12.
indecências vergonhosas ou de horríveis crueldades com
perdas de vidas. Quanto às representações, é suficiente de-
clarar que havia tumultos, quando, pelo respeito ao bem
comum, tentavam reformar os abusos. Algumas palavras
acerca dos seus jogos cruéis e particularmente sobre os
combates de gladiadores, não deixarão de ser instrutivas.
Em tempos remotos encontra-se o costume de matar
animais domésticos, cativos e escravos sobre os túmulos de
reis e chefes falecidos, costume que parece ter existido em
nações bem separadas umas das outras. Esse hábito preva-
lecia pouco entre tribos africanas e índios americanos.
Poder-se-iam citar numerosos exemplos: Aquiles honrou a
pira de seu amigo Patroclus; na pira do rei da Assíria,
mencionado por Diodorus, todas as mulheres do rei foram
queimadas; o sacrifício das viúvas indianas, e, no funeral da
mãe do rei de
Ashantee
em 1817, quando três mil seres
humanos foram imolados. O costume, porém, era tão do gosto
duma plebe cruel, que veio a ser um divertimento. Jogos
sanguinários e exibições gladiatórias eram vulgares em Roma
no tempo da república, assumindo, porém, sob os
imperadores, uma grandeza que causa espanto e parece
impossível.
Os jogos consistiam em lutar entre animais ferozes, ou
entre homens e animais, e também entre homens. Vários
edifícios eram destinados a essas exibições cruéis. O anfi-
teatro Flaviano, agora conhecido como Coliseu, um dos
maiores edifícios do mundo antigo, com lotação de cem mil
pessoas assentadas, era dedicado especialmente a esse di-
vertimento infernal.
Falemos primeiro dos combates de animais. É de pasmar o
número de animais excitados uns contra os outros e mortos.
Já no ano 250 a.C, se menciona a morte de cento e quarenta e
dois elefantes num circo (6). No ano 168 a.C, sessenta e três
panteras e quarenta ursos e elefantes serviram de
divertimento aos romanos (7). Desde esse tempo, combates
entre elefantes e leões, leões e touros, ursos e elefantes,
ocorriam tão freqüentemente, que seria fastidioso
(6) Plínio,
Hist. Nat.,
VIII, 6.
(7) Lívio, XXXIX, 18.
repeti-los. Contudo, o mal crescia em magnitude à maneira
que o império progredia,como se pode deduzir do número
quase incrível de animais que se diz terem sido mortos. Cem
leões foram exibidos por Sulla e destruídos por lanceiros (8).
Em jogos autorizados por Pompeu, no ano 55 a.C, muitos
animais foram mortos, entre os quais há mencão de seiscentos
leões e vinte elefantes. Júlio César, no seu terceiro consulado,
no ano 45, deu um espetáculo semelhante, que durou cinco
dias, no qual girafas foram pela primeira vez introduzidas, e
homens da Tessália combateram com touros bravíssimos. O
hipopótamo, rinoceronte, o crocodilo e a cobra cascavel foram
introduzidos por imperadores subseqüentes para variar o
divertimento. Na inauguração do grande coliseu de Ti to
sacrificaram-se cinco mil animais mansos (9); enquanto
Trajano, célebre entre os imperadores romanos pela sua
clemência, por ocasião duma vitória sobre os dacianos, matou
onze mil animais nas festas que fez para celebrar o fato (10).
Mas o ra aqui. Grande como era o número de ani-
mais sacrificados nesses jogos, não era nada, comparado com
a multidão de seres humanos que, a sangue frio, eram
assassinados para satisfazer os desejos sanguinários e cruéis
da população ou, no dizer dum poeta:
"Sacrificavam pobres seres humanos
Para dar um feriado aos romanos".
Deixando de referir aqueles que caíam nos combates com
as feras, passamos a mencionar os combatentes cativos
tomados nas guerras e os escravos, ou criminosos con-
denados, entre os primeiros apareciam, às vezes, cidadãos
livres, que se alugavam para esse fim. Farrar fornece-nos um
esboço verdadeiro destes combates de gladiadores ("):
"E agora entra na arena a garrida plêiade dos gladiado-
res, com os seus trajos e ornamentos ricos e variados, pa-
rando em frente ao camarote imperial, com os braços le-
vantados. Estes bravos exclamam com voz firme: "Salve
(8) Sêneca,
De Bréb.
Vit., 13.
(9) Suet.,
Titus,
7, Dion.
Cass.,
LV, 25.
(l0)Dion.
Cass.,
LXVIII, 15.
(11) Artigo
Os Cristãos no Coliseu,
no Jomal do Domingo. 1888. p.145.
César! Nós, que estamos para morrer, te saudamos!" Durante
todo o dia corre o terrível derramamento de sangue humano;
o próprio ar parece repleto de orvalho carmesim e do fumo
pesado da carnificina. Agora um gladiador atira o seu laço
com hábil certeza e o
mirmilo
desvia-se com um salto de
agilidade esplêndida; logo os golpes do atirador, do
parmularius,
chovem no grande escudo de qualquer sabino;
depois os caminheiros. os
andatae,
excitam gargalhadas,
lutando às cegas, com as cabeças metidas nos capacetes sem
viseiras; então segue-se talvez um combate entre negros, ou
entre homens e mulheres, ou entre novos e velhos, ou entre
mulheres e pigmeus, ou entre combatentes aleijados e
estropiados. O ar é cortado duma vozearia estrondosa quando
se ouve o grito de
Habet!
(Apanhou!), que significa haver sido
inflingido qualquer golpe mortal. Algum desgraçado,
deixando cair o seu escudo, bem pode levantar o braço para
implorar a piedade do povo; a populaça brutal, ébria de
sangue, e enlouquecida com o encanto horrível daquele
espetáculo, em que seres humanos, como eles próprios, são
esfaqueados e feitos pedaços perante seus olhos, não se
comove. Pode o valente gladiador, agora caído, ter combatido
valorosamente, o melhor que soube; basta que tenha sido
derrotado para não ser perdoado. A turba, de mãos no ar, com
o polegar estendido, dizia que aquela gritaria infernal e
confusa era a sentença, proferida por todos, incluindo
mulheres e crianças: o pobre gladiador vencido tinha de
morrer! E morria" (2).
Muitas vezes os gladiadores eram formados em bandos
(gregatim)
e lançados uns contra os outros. O povo presen-
ciava,
(12) Esta descrição faz-nos lembrar um momento que passamos numa praça de touros em
Salamanca. Nunca tínhamos entrado numa praça de touros em Portugal, mas tendo
acompanhado os meus condiscípulos numa excursão de fim de curso a Salamanca, e sendo-me
dito que o principal toureiro dedicava um touro aos estudantes portugueses, acedi a entrar uns
momentos no camarote que nos estava reservado. Era o momento psicológico.
O
artista
queria ultimar a sorte de morte. O touro, porém, arremetia furiosamente e a
arena estava já coberta de cavalos, uns mortos outros a espernear, muitos com as tripas ao sol
e todos cercados de lagos de sangue! O espetáculo repugnou-me. a ponto de me fazer
empalidecer. Pois aquela multidão só tinha este grito, que cresceu até se tornar ensurdecedor:
Cavalos! Cavalos!
E cavalos lhe foram dados, mas não que eu pudesse continuar a presenciar
aquela brutalidade. Como as touradas são um resto do paganismo, bem servem para provar o
não-cristianismo do povo que ainda as tolera! (Nota do Revisor).
assim, batalhas renhidas, com a excitação de sentidos
provinda das terríveis cenas de sangue. E, quando
cansados disso, dava largas à sua brutalidade, gritando:
"Porque é que ele não morre espontaneamente? Por que é que
foge da espada? Matai-o! Queimai-o! Desfazei-o!" Para que
outro fim serviam os desgraçados? Eles, ou eram escravos, e
criminosos condenados à morte, ou gladiadores legais. Estes
haviam jurado ao seu
lanista
deixar-se queimar, amarrar,
esfaquear, desfazer, conforme fosse preciso. Além disso,
anunciara-se nos cartazes, para maior atração do povo, que os
combates seriam sem quartel
(sine missione).
Os
moços,
os
criados tocavam com um ferro em brasa nos caídos para ver
se estavam ou não mortos.
Seguia-se uma pausa. Por um momento os espectadores,
cujo partidarismo cruel se acha altamente excitado,
descansam. Enquanto entre eles sente-se o cheiro de vinho e
açafrão, criados vestidos de roupas cinzentas espetam
ganchos de ferro nos corpos dos gladiadores mortos e os
arrastam ao
spoliarium,
que se acha quase cheio de cadá-
veres; outros endireitam a terra, e escravos etíopes espalham
45
serrim branco ou areia branca sobre as horríveis manchas de
sangue coalhado para evitar que o terreno fique
escorregadiço.
Feito isso, os portões das jaulas de animais ferozes abrem-
se de repente: e para fora salta uma multidão de leões, ursos,
tigres, panteras e javalis, provocados a um excitamento louco
pelo medo, pela fome e pela tortura; atiçados de maneira a se
despedaçarem uns aos outros perante o público. Mas o
espetáculo ainda não acabou. Depois disto um desgraçado
qualquer, vestido como Múcio Scaevola, queima a sua mão na
chama sem um grito de dor; outro, imitando Hércules, trepa à
sua pira funéria e se reduz a cinzas; outro, à maneira de
Laureolo, é dependurado numa cruz e devorado pelas feras:
ainda outro miserável é queimado na
túnica molesta,
uma
camisa embebida em alcatrão; finalmente, um infeliz é
amarrado a um pau e estropiado por um urso faminto: alguns
são cobertos com peles de animais bravios e caçados por cães
de fila.
Para cúmulo, no meio de gritos ferozes:
"Cristãos às
feras!"
um velho ou uma gentil donzela permanece imóvel
ante o rugido de leões da Líbia, que devoram a vítima para
gáudio da multidão selvagem.
"Enfim o sol se põe sobre o lúgubre dia feriado romano, no
qual miríades de cidadãos ficaram bem inebriados de deleites
com a angústia e a carnificina, e vão para os seus banquetes
ainda intoxicados com os vapores da matança, com o veneno
da crueldade sensual a ferver-lhes no sangue, sem um único
suspiro de compaixão pela perda de todas aquelas vidas
humanas, admiráveis de força, de coragem, de destreza
heróica, e de paixão. Seriam inimigos? Não! o maldito
costume lhes podia haver tisnado os corações, que, presos
duma paixão contagiosa, os fazia insensíveis e surdos à
barbárie representada por essa horrível hecatombe cruel e
criminosa. Não, não eram inimigos; eram objetos de
divertimento".
Lipsio, grande autoridade nesse assunto, calcula que os
combates do Coliseu custavam de vinte a trinta mil almas por
mês, e acrescenta, que nunca guerra alguma custou tantas
vidas como esses jogos. Quando refletimos que a multidão de
espectadores ansiosos incluía todas as classes,
desde o imperador ao escravo mais baixo - o nobre, o senador,
o sacerdote, a esposa, a virgem - que toda a pompa e pureza,
toda a rudeza e brutalidade do império, fazia parte da
multidão que se premia para saciar os olhos de sangue, e
exultar nos gritos e gemidos dos feridos e moribundos, não
podemos ter dificuldade em calcular a condição moral do povo
sob a influência do paganismo no
adiantado
e
civilizado
século, ou período de Augusto (n).
Os limites desta obra impossibilitam-nos de aludir a todos
os males do sistema pagão, que são vistos nos seguintes
exemplos da depravação moral: O praguejar é recomendado,
se não pelos preceitos, ao menos pelo exemplo dos melhores
moralistas pagãos - especialmente Sócrates, Platão e Sêneca,
em cujas obras ocorrem numerosas pragas. Muitos deles não
somente advogam o suicídio, como Cícero, Sêneca e outros (14),
mas levavam consigo os meios, de se destruírem, como o
fizeram Demóstenes, Catão, Bruto, Cássio e outros. A verdade
entre muitos, e mesmo entre os melhores autores pagãos, era
de pouco valor, porque ensinavam que, em muitas ocasiões,
"uma mentira era preferível à verdade"! Para fundamentar
esta terrível afirmação, Home cita muitas passagens de
escritores pagãos (15).
Mais uma afirmação acerca da condição moral e social da
humanidade sob o sistema pagão, e terminaremos este
assunto. A escravidão, sistema de comprar, vender e reter em
seu poder seres humanos, vigorava em todo o mundo pagão.
Alguns podem objetar que a escravidão era permitida pelo
Todo-poderoso sob a dispensação da Lei. Ê verdade que a
economia mosaica permitia uma espécie de servidão, porém a
instituição diferia essencialmente da que prevalecia nas
nações pagas.
A servidão entre os judeus podia provir, legalmente, do
cativeiro na guerra, ou da insolvência, ou incapacidade de
fazer a restituição em casos de roubo. No primeiro caso, é
muito provável que o cativeiro moderado fosse um ato de
(13) Vide
Dicionário de Antigüidades de Roma e da Grécia,
de Smith. artigos
Venatio,
Bestiarii e Gladiadores.
(14) Sêneca,
De Irá, lib. 3, cap.15.
(15) Vide Horne, Introdução, vol.l, pp.13 e 14.
misericórdia no tempo de Moisés. As mutilações horríveis e
outras crueldades praticadas nos cativos eram tão comuns
entre as nações pagas, que o cativeiro entre os judeus era
uma situação preferível. Nos outros casos, a escravidão era
permitida como castigo; da mesma maneira que a in-
solvência fraudulenta e o roubo são punidos entre nós, to-
lhendo-se a liberdade aos criminosos e recolhendo-os à prisão.
O ato de escravizar um indivíduo (exceto nos casos
acima), ou vendê-lo ou tê-lo como escravo, é punido pela lei de
Moisés (16).
Ao contrário dos escravos entre os pagãos, a Lei judaica
prescrevia que os escravos tinham de ser tratados com
humanidade (17). Este preceito é reforçado pelo argumento:
"Porque os filhos de Israel são meus servos, que eu tirei
da terra do Egito".
Os escravos não deviam ser punidos severamente; e
quando morria um servo, o senhor podia sofrer castigo (18). Se
um senhor tirasse um olho, ou dente ou um membro de seu
escravo; este devia receber liberdade (19). Tinham direito a
descanso e a privilégios religiosos em cada dia de sábado ou de
festa, de maneira que um sétimo do seu tempo, pelo menos,
ficasse livre de trabalho (20). Deviam ser convidados para
certas festas (21). Deviam receber alimentação adequada (22). O
senhor era obrigado a velar pelo casamento de uma serva, ou
a tomá-la ou -la a seu filho (23). O servo de origem hebréia
não podia ser escravo mais de seis anos; findos estes, ele devia
ser despedido com sua mulher e com presentes de valor
considerável (24). Ainda antes de expirados os seis anos, os
escravos podiam resgatar-se ou ser resgatados por outrem, por
compra, por quantia adequada aos anos de serviços restantes
(25). No ano do Jubileu,
(16) Êxodo 22.16; Deuteronômio 24.7.
(17) Levitico 25.39-55.
(18) Êxodo 21.20-21.
(19) Êxodo 21,26,27.
(20) Êxodo 20.10; Deuteronômio 5.14.
(21) Deuteronômio 12.5,17,18.
(22) Deuteronômio 25.4.
(23) Êxodo 21.8 e seg.
(24) Êxodo 21.2-4; Levitico 25.1-7.
(25) Levitico 25.47-55.
ao som das trombetas de prata, todos os servos hebreus ou
escravos de nascimento tinham permissão de possuir
propriedades (26).
Um escravo fugido de outra nação, que procurasse refúgio
entre os hebreus, devia ser recebido e tratado com caridade e
não ser mandado de volta (27). Vemos, portanto, que os
escravos de descendência hebréia eram, entre os judeus, um
pouco menos que os aprendizes entre nós. O estrangeiro
aprisionado na guerra recebia melhor tratamento que podia
esperar se caísse nas mãos dos pagãos idolatras.
Não se deve passar por alto que a dispensação mosaica
era temporária e imperfeita(28). Como Jesus explicou que o
divórcio era permitido por Moisés, devido a dureza do co-
ração, assim também uma servidão moderada era permitida,
devido à cobiça, mas permitida com misericórdia para os
cativos.
Quanto à escravidão praticada por cristãos professos,
diremos algumas palavras no próximo capítulo.
Agora passamos a descrever muito resumidamente a
condição dos escravos de senhores pagãos, particularmente
na Grécia e em Roma.
O costume era mundialmente permitido e aprovado; não
um filósofo que o tenha reprovado. Muitos dos mais
célebres filósofos tinham escravos. Até Platão, no seu livro
Estado Perfeito,
deseja somente que os gregos não sejam
escravizados. Na Ática, um distrito pouco maior que uma
província portuguesa, houve em certa ocasião 150.000
escravos. A história informa-nos de que, em Roma, um tal
Scauro tinha 8.000 escravos, e um senador romano, no rei-
nado de Augusto, quando morreu, deixou 4.116 escravos. No
reinado de Júlio César, os escravos eram, em número,
superior aos livres, e essa proporção mais tarde assumiu
aspecto tão alarmante, tanto na Grécia como em Roma, que os
escravos foram proibidos de usar roupa distintiva, a fim de
não conhecerem a sua superioridade numérica.
(26) Levítico 25.49; 2Rs 9.10. (27)
Deuteronômio 23.15,16. (28)
Hebreus 7, 8 e 9.
Pelas leis de Roma, os escravos eram considerados "bens
veis": eram comprados, vendidos, trocados, sem restrição
alguma, e podiam ser punidos à vontade de seu senhor, e
assassinados por ele ou por sua ordem. Não possuíam mais
direitos legais que um cavalo ou uma vaca, se é que estes
animais os tenham. De qualquer tratamento que recebessem,
não podiam apelar para nenhum tribunal, salvo se algum
cidadão humanitário permitisse que o apelo fosse feito em seu
nome. A propriedade do escravo era propriedade do seu
senhor. Não se pode dizer que a mulher do escravo era
também propriedade do seu senhor, porque a lei romana
considerava o escravo como incapaz do casamento legal e,
portanto, não tinha mulher. Seus filhos pertenciam ao seu
senhor e eram vendidos ou trocados. Se tinha de comparecer
no tribunal, o seu depoimento podia ser arrancado com
torturas.
É verdade que houve leis feitas para reprimir a crueldade
com os escravos; porém, como o escravo não tinha o direito de
apelar para a lei, de que lhe servia essa lei? Algumas delas
mostram a vil condição a que estavam reduzidos os escravos;
uma obrigava os senhores a darem a cada escravo um arratel
de trigo diariamente; outra impedia a mutilação dos membros
e da língua; outra tirava o direito que os senhores tinham de
os obrigar a combater com as feras nos circos, exigindo, para
esse fim, licença das autoridades judiciais; ainda outra proibia
a sujeição forçada de escravos à prostituição. De um tal Pólio,
cavaleiro do tempo de Augusto, consta que foi censurado por
atirar os escravos vivos ao seu lago para sustentar lampreias,
que depois se aprazia em saborear na sua mesa! (29)
Era costume, entre as pessoas de posição, acorrentarem
escravos nus nas portas dos seus palácios, como se fossem
cães-vigias. A história de Lázaro, apontado no Novo Tes-
tamento, é uma alusão a Roma no apogeu da sua civilização.
"Os cães vinham lamber-lhes as úlceras".
Sim, os cães são
mais compassivos que o homem quando este tem o espírito
completamente apartado de Deus. Não é uma
(29) Artigo, Pólio Vedius, no
Dicionário Clássico,
de Lempriére.
acusação. O dever daqueles cães-vigias
humanos,
acorren-
tados, feridos e sem esperança, era avisar a família no caso de
tentativa de assassinato (ocorrência diária naquele tempo).
Naturalmente, como a gratidão não poderia influir no escravo,
recorriam às ameaças; o cão-vigia morreria, se o seu senhor
sofresse dano. O escravo tinha de escolher entre a morte pelo
assassínio, se fosse fiel; ou a morte pelo seu senhor, se não
agisse. A história, incidentalmente, menciona dois destes
casos, num dos quais dois escravos de Pedânio Secundo foram
assassinados (10).Resumamos o exposto, para o concluir.
Apresentamos aos leitores as principais feições do pa-
ganismo, sistema que dominou o mundo no período de Au-
gusto. Descrevemos resumidamente o caráter daquele sistema,
a sua natureza politeísta, sacerdotal e cerimonial. Referimo-
nos à crassa obscenidade e falamos da crueldade flagrante de
seus ritos. Esforçamo-nos por dar uma idéia real da condição
moral e social do mundo sob a influência do paganismo e dos
seus efeitos sobre a moralidade e a felicidade das crianças, das
mulheres, dos governantes, do povo livre e dos escravos.
O quadro é verdadeiramente negro e revoltante; quem
quer que leia a história daqueles tempos com atenção, ficará
convencido de que o gênero humano, com poucas exceções,
tinha-se tornado o mais degradante, o mais pecador, o mais
ignorante da verdade, o mais cruel e, enfim, o mais vingativo
que é possível imaginar-se. A vingança, tanto pública como
particular, chegava a ser uma virtude. A guerra, o morticínio e
a violência conferiam as maiores glórias; o pudor e a decência,
tanto pública como particular, tinham desaparecido; a
crueldade e a ferocidade do povo era tal que o sangue
derramado para seu prazer saciaria uma comunidade de
tigres.
Qualquer coisa que hoje provocaria um tumulto, se
tentasse fazer naquele tempo provocava desordens, se
quisesse impedir a sua execução. Além disso, não havia
(30) Tácito,
Anais,
14, cap.42 e 44. Os principais fatos concernentes à escravidão foram extraídos
da
Arqueologia Bíblica,
de Jahn: da
Enciclopédia da Sociedade para Difusão de
Conhecimentos Úteis,
e do
Tesouro Científico e Literário,
de Maunder. artigo
Escravatura.
Também da
Introdução,
de Home. vol.l. pp.12 e 13.
segurança individual: todos, para onde quer que fossem, an-
davam sempre armados; precaução necessária em vista dos
assassinatos e envenenamentos que ocorriam diariamente. O
povo não se envergonhava de rogar aos deuses que
auxiliassem seus punhais e suas taças de veneno, no
conseguimento do que pretendiam. Os homens de pensar,
desejavam, esperavam e olhavam para alguém, que não
conheciam, que os viesse libertar, horrorizados que estavam
pelo que assistiam. Cada deus que os pagãos podiam inventar
ou copiar das nações conquistadas, tinha os seus altares e os
seus templos, e a esses deuses pediam alívio. Desciam da
semelhança de Deus para a semelhança do homem
corruptível, das aves, dos quadrúpedes, e deificavam até
lugares imundos, moléstias, paixões, bicharia e vícios: tinham
perdido toda a esperança de remédio, de solução.
A opinião de Platão, citada, era de que "os homens
tinham-se tornado mais baixos do que os animais mais vis".
Plínio escreve: "Não nada certo sobre a Terra e nada é tão
miserável e no entanto tão orgulhoso como o homem". Tácito
prevê o fim do mundo, "por causa da corrupção da
humanidade". Sêneca escreve: "Tudo está repleto de crime, e o
vício abunda em todo o lugar; o mal praticado excede às
possibilidades de qualquer remédio; a luta e a confusão
tornam-se desesperadas. Ao passo que a luxúria se degenera
em pecado, a vergonha está desaparecendo com rapidez; a
veneração pelo que é puro e bom é desconhecida; cada um
cede aos seus próprios desejos. O vício não permanece
secreto, é público; a depravação tem avançado de tal maneira,
que a inocência torna-se, não somente rara, mas
desconhecida" (31).
É difícil imaginar e impossível descrever a corrupção
abominável daqueles tempos. "A sociedade", diz Gibbon, "era
um caos pútrido de sensualidade". Era um rio do inferno, de
paixões diabólicas e com sede de sangue como uma horda de
animais ferozes. As paixões ultrapassavam as que
provocaram a ira do Céu, quando Deus cobriu o mundo com
água ou destruiu com fogo as cidades da Planície. Paulo, na
sua epístola à igreja que se fundou entre
(31) Sêneca,
De Irã,
2, cap.8.
este mesmo povo romano, refere-se a algumas formas de
iniqüidade praticadas por ele.
Comparando com o nosso tempo, observa-se uma dife-
rença sensível, tanto no que diz respeito à moralidade como à
condição social de todas as classes. Agora mais segurança,
mais virtude, mas conforto e mais felicidade na sociedade e na
família. A que se deve atribuir tal diferença? Não à
civilização, nem ao cultivo das artes e letras, nem ao estudo
de filosofia, porque, notai! tudo isso tinha chegado à perfeição
no mundo antigo, no qual prevalecia, no entanto, depravação
e maldade.
O período de Augusto tem-se tornado proverbial como
declaramos no princípio, pelo incentivo dado às belas artes, à
literatura e à ciência. Não temos hoje escultores cujos
trabalhos excedam aos de Fídias e de Praxíteles; nem
arquitetura que se possa dizer superior ao Partenon de Atenas
ou ao Fórum de Roma; nem poeta épico como Virgílio, nem
lírico como Horário; os nossos pensadores profundos nenhum
excede a Platão e a Sêneca; também não temos historiadores
mais talentosos que os Plínios, os Tácitos, os Salústios e os
Plutarcos; nem ator como Róscio; nem orador que exceda a
Cícero.
A nossa condição aperfeiçoada deve, portanto, ser atri-
buída a qualquer outra influência que não a da simples li-
teratura, da civilização ou do cultivo das artes; e a lição que se
tira parece ser que "o mundo não pode conhecer a Deus pela
Sabedoria" (32). As considerações de Blackburn, aplicadas ao
grande império Assírio, que quase desapareceu antes da
fundação de Roma, são também aplicáveis a Roma, à Grécia, e
a todos os impérios pagãos de outrora.
evidente que a natureza humana entre os assírios não
estava, física ou intelectualmente, num estado infantil, ou
atrofiada. Se contemplarmos as suas formas nas esculturas ou
painéis dos nossos museus, devemos reconhecer que os seus
corpos estavam primorosamente desenvolvidos e que têm o
aspecto de uma raça valente, apropriadamente comparada
pelo profeta a leões, no seu aspecto e
(32) ICoríntios 1.21.
porte majestoso. E se notarmos o progresso intelectual, como o
atestam as suas descobertas da astronomia; o seu gosto pelas
artes; os seus conhecimentos e habilidade nas indústrias; o
seu poder e aprumo nas armas, devemos confessar que não lhe
descobrimos a menor inferioridade intelectual. E apesar de
todas estas vantagens, o que eram eles? Avarentos,
depravados, bêbados, desordenados, opressivos e cruéis. As
cenas de refinamento, esplendor e magnificência que os
cercavam, talvez dessem graça e dignidade às suas maneiras,
mas não davam pureza aos seus caracteres, nem bondade aos
seus corações.
"Como todas as grandes nações de outrora que os cercavam ou
lhes sucederam, os assírios eram vítimas da ignorância, do
vício da guerra e do despotismo. O primeiro alvo de todos os
governos - a felicidade do povo - nunca foi considerado pelos
seus governantes; e, por conseqüência, os governados eram os
instrumentos dos príncipes sanguinários e dos sacerdotes
idolatras, que colocavam a felicidade e a glória nacional em
despojos militares e em prosélitos constrangidos. A escravidão
que impunham aos seus desgraçados prisioneiros era muitas
vezes mais amarga que a morte. É, na realidade, evidente, em
face de toda a história, quer de nações, quer de indivíduos,
que
o simples conhecimento das artes e das letras
não é suficiente
para renovar o coração ou melhorar a vida dos que os
cultivam. Homens eminentes nas artes e nas letras tem
havido, destituídos de senso moral, e escravos dos vícios mais
baixos, vis e degradantes. Não obstante terem vivido entre as
cenas mais belas da natureza e da arte, todas as influências
suaves e edificantes do que é belo e sublime têm passado por
eles em vão, e os países mais belos têm testemunhado os
crimes mais repelentes. Conquanto nos regozijemos pelo
progresso das artes, da ciência e da literatura entre nós e
folguemos de ver os museus, galerias de pintura, escolas de
arte, parques, jardins de recreio e zoológicos, tudo destinado
ao povo, mesmo sabendo que tais distrações desviam a atenção
das massas de coisas grosseiras e prejudiciais, entendemos
que tudo isso não impede sejam os corações altivos e egoístas,
sensuais e ímpios; capazes tanto de manifestar misantropia,
como rebelião insolente contra o Altíssimo.
somente pela influência da Verdade divina no coração,
que o homem pode ser restaurado à uma feliz conformidade
com o caráter moral de Deus."
-
3
O Cristianismo e
as Catacumbas
"Para alumiar os que vivem assentados nas trevas e na
sombra da morte",
Lucas 1.79.
O capítulo anterior foi encerrado no meio da sombra e
das trevas da ignorância pagã. Vimos o homem, fechando os
olhos à luz da religião natural (aquilo que se pode pela
Natureza conhecer de Deus), perder o último vislumbre da
revelação primitiva, passando a apalpar no caminho, com-
pletamente incapaz de achar a luz para guiá-lo. Ouvimos as
queixas dos homens virtuosos; notamos a desfaçatez e a
depravação dos perversos. Contudo, em meio ao desânimo e ao
desespero, existia um pressentimento geral de libertação - um
quase que universal anseio ou expectação do surgimento de
um libertador. É verdade que esta idéia era indefinida e, por
conseqüência, imperfeitamente apreciada, era porém
geralmente concebida entre as nações cuja literatura tem, até
certo ponto, chegado a nós; e, o que é mais notável, a
expectação tinha atingido o seu auge no período de Augusto,
em que mais referências a essa esperança foram feitas.
Os hindus esperavam outro
Avatar,
ou encarnação do seu
deus principal; e esse Avatar tinha mais importância, porque
viria modificar os destinos da raça humana. Entre os persas,
que seguiam a doutrina de Zoroastro, esperava-se
Sosiosh,
o
"Homem do Mundo". Os chineses, segundo Confúcio, "deviam
buscar o santo do Oeste". O oráculo pitônico entre os gregos, e
os sacerdotes etruscos na Itália, tinham predito a queda deles
mesmos. A profetisa Sibila tinha falado da vinda do Senhor da
Terra (1). Os astrólogos caldeus viajaram, como sabemos, para
a Judéia, com presentes reais para o esperado Libertador (2).
Herodes, governador da Judéia, participava da mesma
expectação e consultou o Sinédrio quanto ao lugar do
nascimento do Messias, e, sendo informado que um profeta
judaico havia predito que seria Belém, mandou matar todas
as crianças daquela cidade, pensando, assim, conseguir a
destruição do Rei esperado. Judeus devotos, tais como Simeão
e Ana, estavam esperando no templo judaico pela vinda do
Messias, certos de que o tempo estava próximo (3).
Assim, vemos que os antigos escritores davam curso à
tradição; astuciosos sacerdotes pagãos e pretensos profetas
queriam encaminhar a crença popular para as suas comu-
nicações com o Céu; governadores cruéis temiam aquilo que
todos previam, e homens e mulheres santas esperavam "a
consolação de Israel" e do mundo. Todos eles, tanto os bons
como os maus, são testemunhas da esperança prevalecente
duma futura intervenção nos destinos do homem.
Roma presta-se especialmente para campo da nossa in-
vestigação; como nos legou muita literatura, é de presumir
nela se ache referência especial a essa pressentida libertação
do mal. Suetônio, historiador romano, diz: persuasão
antiga e fixa, predominante no Oriente, estar predestinado
que alguém se levantará na Judéia, para estabelecer
(1) Religião Genuína e Espúria,
de Mühleisen. vol.l. p.185.
(2) Mateus 2.1 e 2.
(3) Lucas 2.25-35,36-38.
56
um império
universal" ( 4 ) .
Tácito escreve: "Muitos estavam
persuadidos de que nos livros antigos dos sacerdotes estava
declarado que naquele tempo o Oriente prevaleceria e que
alguém havia de vir da Judéia, e possuir o predomínio" (5)'.
Josepho e Philo declaram saber que existia a mesma
expectação.
Pelo tempo em que nasceu Augusto - cerca de sessenta
anos antes de Cristo - a vinda anunciada de um rei, con-
quistador ou libertador, que havia passado a provérbio, foi
citada no Senado e tornou-se assunto dos poetas.
Virgílio escreveu uma pastoral cumprimentando o cônsul
romano Póllio, ao qual nos referimos, pelo nascimento de
um filho, a quem, em sentido lisonjeador, descreve como o
libertador predito. Diz-se que a substância da pastoral foi
plagiada de uma profecia dita por Sibila. As duas linhas
seguintes são tradução dessa pastoral:
As nações discordes ele em paz unirá,
E à virtude toda a humanidade guiará (6).
Como outra indicação desta predominante expectação, ao
ser predito por Nigídio Figulo, astrólogo e matemático, o
nascimento do imperador Augusto, foi também profetizado
que ele seria o senhor da terra. De fato foi deificado durante a
vida pelos seus aduladores, que lhe erigiram templos e a sua
adoração foi estabelecida; o seu nome, originalmente
Otaviano, foi alterado para Augusto (sagrado) e, na língua
grega, para Sebastos (adorável). 0 oitavo mês do nosso
calendário ainda é chamado Agosto em honra de Augusto.
Tais eram as aspirações predominantes dos homens bons,
os temores dos maus e o orgulho dos ambiciosos, quanto à
vinda de um rei ou libertador. Estas antecipações explicam, e
ao mesmo tempo confirmam, as profecias da Escritura,
ditadas muito antes do acontecimento; por exemplo, a profecia
de Ageu, dita 520 anos antes de Cristo: "Porque isto diz o
Senhor dos exércitos: Ainda falta um
(4) Suetônio,
Vespasiano,
cap.4.
(5) Tácito,
Anais,
v,13.
(6) Virgílio,
Quarta Pastoral.
57
pouco e eu comoverei o céu, e a terra, e o mar, e todo o uni-
verso. E moverei todas as gentes: e virá o
Desejado de todas
as nações"
(7)
.
No mundo físico, tem-se notado muitas vezes que a es-
curidão mais intensa precede o raiar do dia: no decurso da
história universal tem acontecido, freqüentemente, que o
período da maior decadência e confusão não tem sido senão o
presságio de prosperidade e paz. Assim pode-se dizer da época
a que este capítulo se refere: a incerteza e perplexidade de
espírito, as trevas da atmosfera moral e a violência das
tempestades das paixões humanas iam extinguir-se ao raiar
da luz, da pureza e da paz. cerca de 1922 (*) anos (9), mas
no tempo de César Augusto, apareceu no nosso mundo uma
pessoa maravilhozsíssima, operou uma renovação
extraordinária nos sistemas religiosos existentes. Quanto ao
nascimento e posição, ocupava a de um artista, segundo nos
informam os evangelistas. A tradição nos informa talvez,
acertadamente, que seguiu, como seu pai adotivo, ofício de
carpinteiro. Algumas versões dos Evangelhos confirmam esta
tradição.
O mundo, como dissemos, estava esperando intensamente
a vinda de alguém de importância, porém não o esperava
entre as camadas humildes da sociedade. O aparecimento a
que aludimos atraiu, portanto, pouca atenção. Contudo, esse
nascimento foi admiravelmente atestado com prodígios, tais
como o aparecimento de uma estrela e visões de anjos. Deu-se
na época apontada por Daniel (10); no lugar indicado por
Miquéias (11); na ocasião o recenseamento dos habitantes da
Judéia, mandado fazer por Augusto, imperador romano, que
demonstrou oficialmente que, tanto da parte da mãe como da
do pai, o recém-nascido era da linhagem da casa real de Davi,
da tribo de
(7) Ageu 2.6 e 7.
(8) Ano em que se publica a primeira edição desta tradução. A primeira edição original
foi publicada em 1883.
(9) Jesus Cristo nasceu cerca de quatro a seis anos antes do começo da era cristã vulgar, porém o
dia não está bem determinado. O erro na computação da data ocorreu em 527 da nossa era. Vide
Cronologia,
do Arcebispo Usher.
(10) Daniel 9.25-27.
(11) Miquéias 5.2.
Judá, da família de Abraão, como estava predito claramente
nas Escrituras judaicas.
Não é nossa intenção dar os pormenores dos fatos ma-
ravilhosos relacionados com o nascimento, vida e morte de
Jesus Cristo. Muitos estão cientes disso; e todos têm facili-
dade de se informarem, caso queiram. Ele declarou nada
menos que isto: ser o Filho de Deus; ser um com Deus; enfim,
o Messias, "o Desejado de todas as nações", o libertador
esperado pelos judeus e pelos gentios.
Não forma parte do nosso propósito argumentar sobre a
autenticidade dessas declarações. Muitos as admitem, outros
não. Outros ainda têm investigado bem o fundamento em que
se apóiam, mas todos admitirão que é um assunto por demais
importante para se tratar de forma apressada; nem as provas
nem as evidências se poderão aduzir no pouco espaço de que
dispomos. Recomendamos, contudo, àqueles que ainda não
estudaram o assunto, fazê-lo desejosos de apurar a verdade. A
investigação não é proibida a ninguém. Alguns intelectos mais
elevados, verdadeiros luminares da humanidade - tais como
Milton, Newton e outros - têm-se entregado a esse estudo e
têm aceitado sem reservas a verdade daquelas informações
(12). Propomo-nos tratar aqui dos fatos históricos e da doutrina
que Cristo introduziu e de forma resumida.
Jesus asseverou que a sua missão era curar e salvar um
mundo cheio de pecado, ser uma luz para os que estavam nas
trevas e guiar todos os que seguissem a sua direção para a
paz, para a santidade, para o Céu. Passou a vida fazendo bem
ao corpo e à alma dos homens, e a propagar, inculcar e
explicar as suas doutrinas. Associou-se aos humildes, aos
ignorantes, a Os necessitados e aos pecadores. Recusou hon-
ras reais quando lhe foram oferecidas, e desprezou toda a
idéia de governo ou grandeza secular, como impróprios ao seu
reino, que declarava ser de natureza espiritual. Morreu
(contra a expectativa dos seus seguidores) como malfeitor,
(12) Ê um fato bem significativo que alguns dos homens mais em evidência em nossos dias, tais
como chefes de estado, estadistas, diplomatas, generais, professores, etc. honram-se de ter
ensinado ou de ensinar ainda nas escolas dominicais as verdades contidas nos Evangelhos.
às mãos do governo romano, por instigação de seus desa-
pontados compatriotas, os judeus. Mas disso, tanto Ele, como
os profetas antes dele, tinham predito. Tanto na ocasião da
sua morte, como na do seu nascimento, ocorreram prodígios,
tais como terremoto e escuridão sobrenatural numa ocasião
em que, segundo as leis da natureza, era impossível haver
eclipse do sol (13). Esses prodígios foram relatados às
autoridades de Roma e registrados em seus anais... (14).
Para tornar a sua vida mais assinalada na história do
mundo (independente da sua importância sob o ponto de vista
religioso), Cristo ressurgiu da sepultura, como tinha predito,
apesar da guarda romana, e apareceu repetidas vezes a seus
amigos e seguidores durante quarenta dias, subindo depois
para o Céu na presença deles.
A realidade destes fatos é testificada como ainda não o foi
outro fato da história. Estes fatos estão citados por
testemunhas oculares em não menos de cinco narrações dife-
rentes. Também muitos outros livros, escritos por pessoas que
assistiram aos acontecimentos, se referem a eles e os
confirmam. E, o que é digno de nota - as testemunhas destes
fatos viajaram por terra e por mar para espalharem a notícia,
sem lhes descobrirmos nenhum dos motivos que usualmente
influem os homens a agir.
Eles nada ganharam com as suas
asserções, senão perseguição, insultos e desprezo; muitos deles
voluntariamente sacrificavam suas vidas como testemunho da
sinceridade das suas afirmações e da sua fé.
(13) Todos os eclipses do sol devem suceder por ocasião da lua nova. Jesus Cristo foi crucificado
por ocasião da festa da Páscoa, sempre celebrada na lua cheia.
(14) Ê certo que os prodígios que acompanharam a crucificação não deixaram de ser sabidos em
Roma, não obstante a declaração contrária feita por Gibbon na sua obra
Decadência e Queda
do Império Romano
(vol.II, p.379). Tem-se tratado muito dessa falsa declaração, rebatida
por Horne, na sua obra
Introdução ao Estudo Crítico e ao Conhecimento das Escrituras
(vol.l,
cap.3, p.187). Contudo, não será inútil citar aqui as duas autoridades mais concludentes sobre
este ponto. A escuridão e o terremoto são ambos claramente referidos por Celso, o adversário
mais implacável e mais astuto do Cristianismo, como
fatos
que lhe era impossível negar
(Orígenes contra Celso,
liv.2, 55, p.94); e Tertuliano, dirigindo-se aos seus adversários pagãos,
diz, sem medo de contradição: "No momento da morte de Cristo, a luz do sol desapareceu, e a
Terra ficou em escuridão ao meio dia:
maravilha esta relatada nos
vossos próprios anais, e
conservada nos vossos arquivos até o dia de hoje"
(Tertuliano,
Apologia, cap.21).
Repetimos: Nem um fato da história foi comprovado tão
abundantemente como os fatos que se prendem à vida, morte e
ressurreição de Cristo. Aquele que rejeita estas verdades deve
estar preparado para crer: primeiro, que uns cento e vinte
indivíduos, pelo menos, se combinaram para espalhar uma
falsidade com a qual nada lucrariam, mas que lhes podia
ocasionar a perda de tudo que o mundo preza, até a própria
vida; segundo, que tais pessoas, se culpadas de falsidade,
inculcavam e exerciam a virtude, coisa não comum; terceiro,
que todos eles persistiram na afirmação de uma falsidade,
sem ninguém descobrir a natureza da conspiração ou
combinação (se ela porventura existia); quarto, que muitos
deles selaram o seu testemunho com o próprio sangue, quando
a simples confissão do seu erro (se tal tivesse sido), lhes teria
poupado a vida.
Quem pensais então que está certo - aquele que aceita
uma declaração garantida por testemunhas oculares, não
contraditadas por aqueles que o teriam feito, se pudessem, ou
o homem que rejeita a qualquer testemunho, aceitando todas
as conseqüências da rejeição?
Devemos agora deixar
os fatos
relativos à introdução ao
Cristianismo, e considerar, também resumidamente, a na-
tureza da
doutrina,
ou ensino, introduzido por Cristo, ou seja,
o
caráter do sistema denominado Cristianismo.
Isto, diga-se
de passagem, não admite dúvida quanto à sua realidade.
Ainda que mal entendido, e, por isso, deturpado, o
Cristianismo é um fato cuja existência ninguém terá coragem
bastante de negar.
Em primeiro lugar notemos que o Cristianismo constitui
uma admirável inovação quanto às idéias do mundo, tanto
judaico, como pagão. Não era nenhuma adaptação, nem mera
reforma; não tinha compromisso algum com o passado. A
linguagem de Cristo, em mais de uma ocasião, afirmava
claramente: "Eis faço eu novas todas as coisas" (15). Ele
explicou aos seus estupefatos seguidores, figurativamente, que
assim como vinho novo não podia ser posto em odres velhos,
nem remendo de pano novo em vestido
(15) Apocalipse 21.5.
velho, assim o seu sistema tinha de exceder e pôr de lado
todos os sistemas que estavam arruinados, envelhecidos e
prontos a desaparecer (16). A religião cristã efetuou uma
revolução
e não uma restauração, reforma ou reconstrução.
Era um
completo contraste
com o paganismo existente.
Um esboço das principais feições dos dois sistemas dará a
cada mente uma clara percepção do seu antagonismo.
O paganismo era, como foi explicado,
politeísta.
Cristo
ensinou que Deus era um. O paganismo representava Deus na
semelhança de
objetos visíveis,
tais como: homens cor-
ruptíveis, pássaros, animais quadrúpedes e vermes. O
Cristianismo, ao contrário, representava-o como
Espírito,
"a
quem ninguém jamais viu ou poderá ver"; "eterno, imutável e
invisível". O paganismo em seu culto e prática era
formal,
externo, cerimonial e local;
Cristo ensinou que daí em diante a
religião aceita seria somente a
espiritual.
"Os verdadeiros
adoradores adorarão o Pai em espírito e em verdade, porque
são estes que o Pai procura para que o adorem."
O paganismo era essencialmente
sacerdotal.
O Cristia-
nismo ensina que não é mais necessário um
sacerdócio
medianeiro e sacrificador;
que Cristo abriu um "caminho novo
e vital" de acesso a Deus e convida a todos os seus seguidores
a chegarem-se a Ele diretamente por Cristo. O paganismo,
como o judaísmo, impunha continuamente, por qualquer
transgressão,
sacrifícios sem conta; o
Cristianismo ensina que
"Cristo foi uma vez imolado para tirar os pecados de
muitos", e que "com
uma só oferenda
fez
perfeitos para sempre
aos que tem santificado". Cristo substituiu os
ritos, e as
oferendas
cruéis, custosas e enfadonhas, pela fé, operando por
amor a Deus e aos homens.
Em lugar do perdão
comprado,
o único alcançado entre os
pagãos, por meio de oferendas custosas, Cristo ofereceu
salvação e perdão
gratuitos
ao mais pobre, "sem dinheiro e
sem preço". Enquanto o paganismo só introduzia os
abastados,
os sábios, e os grandes
nos seus mistérios, Cristo
(16) Lucas 5.36-39.
mandou que a sua mensagem fosse levada especialmente aos
pobres,
aos
pecadores
e aos
simples,
e isso mesmo Ele fez.
Longe de sancionar a
imoralidade
ou a
sensualidade,
que o
paganismo animava e desenvolvia, Cristo ensinou que até os
pensamentos do coração,
deveriam ser vigiados e regulados, e
que a condescendência com a emoção pecaminosa era
equivalente ao pecado em ação; e pronunciou a sua bênção e a
promessa da visão espiritual aos "limpos de coração".
Longe de permitir a crueldade, Cristo ensinou: "Bem-
aventurados os misericordiosos, porque eles alcançarão mi-
sericórdia." Longe de louvar a
vingança
ou o
ódio
tão comuns
entre os pagãos, Cristo ensinou a doutrina até então nunca
ouvida. "Eu vos digo:
amai
a vossos inimigos, fazei bem aos
que vos têm ódio, e orai pelos que vos perseguem e caluniam."
Ele próprio guiou-nos neste difícil caminho orando pelos seus
algozes: "Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem."
Longe de justificar o
assassinato
em represália, coisa tida
como meritória entre os pagãos, Cristo ensinou que, quem se
irar contra seu irmão, sem motivo plausível, ou o insultar,
merece o fogo do Inferno.
Recapitulando: A guerra, agressiva ou vingativa; o der-
ramamento de sangue, o roubo, a opressão, a escravidão -
quase toda a prática do paganismo - Cristo condenou sem
reservas. Cristo cortou pela raiz todas as desculpas para tais
práticas, pelo mandamento: "Tudo que quereis que os homens
vos façam, fazei vós também". E quando alguém lhe
perguntou pela definição do termo
próximo,
Cristo respondeu,
por meio duma parábola: "O teu maior inimigo" (17).Eis um
pequeno e imperfeito esboço dos fatos ligados à fundação do
Cristianismo e do caráter do sistema assim chamado.
O Cristianismo diz aos operários: o considereis uma
indignidade, mas uma honra, serdes chamados trabalhadores.
O trabalho é mais honroso que a ociosidade, ainda mesmo
quando ela seja engrandecida com títulos ou justificada com a
riqueza. Deus mostrou respeito pelo trabalho
(17) Lede o Sermão da Montanha no Evangelho de S. Mateus, caps.5-7.
honesto, criando o homem capaz de ser feliz com o trabalho e
infeliz sem ele. Deus mandou o nosso comum progenitor
cuidar do jardim em que foi colocado e, acima de tudo,
permitiu que seu descendente, Jesus Cristo, passasse a maior
parte da vida terrena numa oficina de carpintaria.
Nunca creiais, trabalhadores, em quem vos disser que
Deus lançou sobre o homem
a maldição do trabalho.
A nossa
estrutura muscular e nervosa contradiz tal afirmação; a
própria experiência dos homens a nega; e, acima de tudo, a
Palavra de Deus repudia essa asserção. A
terra
foi
amaldiçoada, sim, pela rebelião do homem. mais mise-
ricórdia que castigo no trabalho.
O Cristianismo, nascido na Judéia, muito breve chegou a
Roma, a metrópole do mundo. É desconhecido o tempo exato
da sua chegada ali, mas é provável que tivesse sido levado por
alguns daqueles três mil cristãos (18), fruto do sermão de Pedro
no dia de Pentecoste, quando Pedro teve o privilégio de
anunciar o reino dos céus àquela multidão vinda de todas as
nações que debaixo do céu (19). Estamos claramente
informados de que havia entre os seus ouvintes romanos,
"tanto judeus como prosélitos", isto é, judeus naturais de
Roma e prosélitos do Judaísmo de entre os romanos. Seja
como for, está bem claro que havia cristãos em Roma durante
o reinado de Cláudio ou cerca do ano 52 de nossa era, isto é,
dentro de vinte e cinco anos depois da morte de Cristo, porque
Suetônio, escritor pagão de Roma, diz que os judeus fizeram
tumultos em Roma, instigados por Cresto, (Cristo), cuja morte
ele, como pagão, desconhecia, e que, por isso, foram banidos
pelo imperador Cláudio (20). Este testemunho pagão concorda
exatamente com a declaração de Lucas (21), de que o apóstolo
Paulo achara em Corinto, na Grécia, "um judeu, por nome
Áqüila, natural do Ponto, que pouco antes havia chegado
(18) Atos 2.41.
(19)Atos 2.5..
(20) Suetônio, Cláudio,
cap.25: "Judaeos impulsore Chresto assidue tumultuantes, Roma expulit".
(21) Atos 18.1,2.
da Itália, e Priscila, sua mulher, devido a Cláudio ter man-
dado sair de Roma a todos os judeus". Que Áqüila e Priscila
eram judeus
cristianizados,
antes de sua saída de Roma, não
pode haver dúvida, porque não é mencionada a sua conversão
em Corinto; eles associaram-se a Paulo no seu trabalho diário
de fazer tendas; foram eles que ensinaram a Apoio mais
particularmente o caminho do Senhor ; auxiliaram Paulo nos
seus trabalhos apostólicos e tinham uma igreja em sua casa
(22). O Cristianismo tinha-se estabelecido em Roma no reinado
de Cláudio - vinte e cinco anos depois da morte de Cristo. Uns
cinco ou seis anos mais tarde, cerca dos anos 57 a 59 de nossa
era, o apóstolo Paulo escreveu uma carta aos cristãos em
Roma, chamada por nós "Epístola aos Romanos". Nessa carta
fala do seu forte desejo de os visitar e agradece a Deus porque
"em todo o mundo é divulgada a vossa fé" (23). E na parte final
da carta manda saudações cristãs a muitas pessoas e famílias,
o que evidencia que o Cristianismo não podia ter sido ali
recentemente estabelecido, pois, então, havia feito
progresso.
Pode não ser de muita
importância
determinar o período
exato em que a religião de Cristo começou a ser conhecida em
Roma; porém, cremos que será
interessante
mostrar a ocasião
e a oposição que adveio no reinado de Cláudio quando
considerarmos a situação das Catacumbas, e combinar os
fatos com as circunstâncias concernentes à primeira chegada
de Paulo à cidade imperial. Cerca de dois anos depois da data
da sua carta, Paulo visitou Roma, como prisioneiro, para
julgamento, por ter apelado para Nero, o imperador romano.
Se tivermos diante de nós um mapa do Mediterrâneo,
poderemos traçar o curso da viagem de Paulo a Roma, como
nos informa o último capítulo de Atos dos Apóstolos: De
Melita ou Malta, onde naufragou, a Siracusa, na costa da
Sicília, onde se demorou três dias; daí a Régio, porto
meridional da Itália; depois a Puzolo e assim até a Via Ápia,
(22) Compare-se Atos 8.2,3,26; Romanos 16.3-5 e ICorintios 16.19.
(23) Romanos 1,8,10,11.
cerca de cinqüenta e seis milhas e às "Três Vendas", cerca de
trinta milhas de Roma. A Via Ápia, era uma estrada que
seguia ao sul de Roma. Note-se que irmãos cristãos vieram
encontrar-se com Paulo na Praça de Ápio (24), isto é, a uma
distância de cinqüenta e seis milhas de caminho,
circunstância indicativa da afeição destes novos cristãos pelo
apóstolo. Ora, era na linha dessa Via Ápia, percorrida por
Paulo na sua viagem a Roma, que se encontravam muitas
Catacumbas - esconderijos dos cristãos primitivos.
Encarando a oposição ao Cristianismo manifestada no
reinado de Cláudio, a circunstância, narrada por Paulo, de que
ninguém assistiu a ele na sua primeira defesa, mas que todos
o desampararam quando teve de comparecer perante Nero (25),
a presença de judeus naquele mesmo lugar e tempo, e por
terem os judeus não convertidos dito: "o que nós sabemos desta
seita, é que em toda a parte a impugnam" (26),cremos que os
cristãos, tendo ainda em conta a sua própria segurança,
começavam a buscar refúgio da antipatia popular, da oposição
judaica e da perseguição do governo romano nesses
esconderijos subterrâneos que se estendiam pelo menos até
quinze milhas de Roma na direção da Via Ápia.
Isto, é claro,
não passa de mera suposição; mas poderia explicar como esses
irmãos puderam encontrar com Paulo a uma distância tão
grande de Roma.
A tempestade da perseguição aos cristãos, tão repetida-
mente predita pelo seu Senhor e Mestre, estava prestes a
começar. Antes do fim do reinado sanguinário do monstro
Nero, eles, sem dúvida, foram compelidos a refugiarem-se
nessas covas e cavernas da terra (27).
Não é nosso propósito seguir a história da Igreja Cristã de
Roma nas suas lutas primitivas, nem narrar as perseguições
que ela sofreu; basta declarar que o primeiro caso bem
fundado de perseguição ocorreu sob o reinado de Nero, cerca
do ano 64 da nossa era, após a primeira visita de
(24) Atos 27.15.
(25) 2Timóteo 4.16.
(26) Atos 28.22.
(27) Hebreus, 11.38.
66
Paulo a Roma. Tácito narra minuciosamente as
circunstâncias; e, sendo pagão, encara o grupo cristão debaixo
desse ponto de vista. No décimo ano do reinado de Nero, a
cidade foi incendiada, ficando quase totalmente destruída; o
fogo durou oito dias e dos seus catorze departamentos
somente oito escaparam. Tal foi a indignação do povo que
acusava Nero de ter lançado fogo propositadamente, que ele,
para se livrar da ira popular, atribuiu o crime aos desprezados
cristãos.
São estas as palavras de Tácito: "A infâmia daquele horrível
caso ainda pertencia a Nero. Para fazer desaparecer, sendo
possível, este rumor geral, Nero acusou a outros e puniu-os
com torturas violentas; acusou uma raça de gente detestada
pelas suas diabólicas (?) práticas, que era comumente
conhecidos pelo nome de cristãos. O autor dessa seita era
Cristo, que no reinado de Tibério tinha sido punido de morte,
como criminoso, pelo procurador Pôncio Pilatos. A princípio
prendiam os que se apresentavam como seguidores dessa
seita, depois, prenderam uma
grande multidão
que
descobriram, e todos foram condenados à morte, o tanto
pelo crime de incendiarem a cidade, mas por serem
considerados inimigos do gênero humano.
Executavam-nos de maneira a expô-los ao escárnio e ao
desprezo. Alguns eram cobertos de peles de animais selvagens
para serem dilacerados pelos cães, outros crucificados;
enquanto outros,
untados de matéria combustível,
eram
colocados à noite como lampeões e assim morriam queimados.
Para estes espetáculos Nero cedia os seus jardins e ao mesmo
tempo promovia diversões de circo, até que, afinal, estes
homens, ainda que realmente criminosos e merecendo castigo
exemplar, começaram a atrair comiseração como povo que
estava sendo destruído, não tanto por causa do bem público,
mas para saciar a crueldade de um homem" (28).
(28) Tácito,
Anais,
15, cap.44.
Na sua segunda visita a Roma, Paulo foi morto por
Nero(29). Desta data em diante, a história identifica os cristãos
de Roma com as Catacumbas. As perseguições reproduziam-se
periodicamente, sob diferentes imperadores, durante alguns
séculos; muitos dos editos autorizando as perseguições
começam por proibir a entrada e o refúgio nestes esconderijos,
como nos escritos de Valeriano e Galieno. Mas, ao terminar
uma das perseguições, Galieno concedeu aos cristãos uma
licença formal para voltarem às Catacumbas (30).
Mas é tempo de introduzir os nossos leitores nas Ca-
tacumbas (berço do Cristianismo em Roma), de tomá-los pela
mão e guiá-los nas sinuosidades, explicando-lhes o que
parecer misterioso; tirando lições, à medida que pros-
seguirmos, e terminando com as reflexões morais que as
circunstâncias apresentarem. A palavra
Catacumba
significa,
literalmente, uma cavidade subterrânea, mas a aplicação
deste vocábulo tem-se limitado a subterrâneos usados para
sepulturas, chegando-se a usar, para tais fins, extensas
pedreiras nas proximidades de muitas cidades grandes.
Assim, em Siracusa, Alexandria, Nápoles e Paris, como
também em Roma, existem escavações que foram usadas como
sepulturas. As de Roma, contudo, excedem todas as outras por
sua extensão, e excedem-nas bastante em interesse, também.
Nos últimos dias da República e durante o reinado dos
primeiros Césares, a cidade de Roma cresceu muito em
extensão e magnificência. A glória de Augusto é ter "achado
Roma tijolo, e a deixado mármore". Exploraram em muitos
lugares as pedreiras que circundavam a cidade para tirarem o
material necessário a obras públicas. Essas
(29) Ê pouco crível que o Apóstolo Pedro tivesse parte na fundação da Igreja de Roma. Se tivesse,
não teria guardado silêncio absoluto dos seus trabalhos. "Somente Lucas está comigo",
escreve Paulo, pouco antes da sua morte. Apesar disso. Paulo e Pedro são representados
como tendo sofrido martírio no mesmo dia. Lucas, nos Atos dos Apóstolos, também guarda
silêncio sobre a presença de Pedro em Roma. A história dos vinte e cinco anos de episcopados
de Pedro em Roma é por demais absurda para merecer refutação. Debaixo da própria sombra
do Vaticano, foi recentemente refutada em público a idéia de que. Pedro
alguma vez
tivesse
estado em Roma.
(30) Maitland,
A Igreja nas Catacumbas,
p.38; Eusébio.
Hist. Ecles.,
7. cap.13.
cavidades, especialmente as do morro Esquiline, das quais
retiravam areia - não devem ser confundidas com as cha-
madas "Catacumbas Cristãs". É claro que elas nunca foram
cemitérios cristãos: eram apenas sepulturas de pagãos.
No período referido era costume entre os romanos cristãos
queimar os seus mortos e conservar somente as cinzas em
urnas. Àqueles, porém, que pereciam nas mãos da justiça, ou
vítimas do raio ou que se suicidavam, eram-lhes negados os
ritos usuais de cremação. As classes mais baixas do povo e os
escravos não podiam pagar as honras de uma pira fúnebre. Os
seus corpos, portanto, eram lançados sem cerimônia dentro dos
poços de areia, onde se putrificavam, com pesar dos habitantes
de Roma, por causa do mau cheiro. Esses poços chamavam-se
por isso,
puticuloe,
provavelmente de
putesco,
putrefazer.
Estes poços esquilínios, evidentemente, foram cobertos no
reinado de Augusto (31), antes da introdução do Cristianismo
em Roma, e, portanto, contêm somente cadáveres de pagãos,
não havendo necessidade de a eles nos referirmos mais nestas
ginas.
Voltamos agora às Catacumbas, as galerias escavadas, que
eram usadas como esconderijos ou sepulturas exclusivamente
por cristãos, como se depreende das inscrições e do fato de
serem os mortos enterrados ali
inteiros,
separadamente, em
loculi
ou sepulturas cavadas, e não reduzidos a cinzas ou
amontoados em buracos ou poços, como o eram os pagãos.
Começaremos a nossa jornada tomando uma das estradas
reais que saem de Roma - a Via Flamínia, a Via Ostiensis ou
talvez, a melhor de todas, a Via Ápia, e visitaremos a extensa
catacumba chamada S. Sebastião, que fica naquela parte.
Entramos por um portal baixo, escuro, sobre uma nave que
se ramifica em várias direções, perdendo-se na escuridão que
abrange todos os objetos à distância de poucos metros. Porém,
acenderemos as nossas velas e tochas e pros-
(31) Horácio, Sátiras, 1.8.
70
seguiremos com cuidado, acompanhados por um guia que
conheça alguma coisa das sinuosidades intrincadas daquele
labirinto.
As galerias muitas vezes têm dois ou três metros de altura
e, de um a dois, de largura, porém algumas vezes são menos
espaçosas. Ao redor de nós, fileira sobre fileira, em sucessão
sem fim, se observam túmulos roubados do seu conteúdo ou
dos quais foram tirados os ladrilhos ou placas que os
fechavam; aqui está um maior que os outros - é um
bisomus
(M) ou sepultura para dois cadáveres; ali um corredor (ou
galeria) ramifica-se para a esquerda - não é seguro atravessá-
lo, porque se têm desprendido grandes blocos da abóbada;
medida de precaução, visto alguns estranhos terem-se
desviado e perdido, não havendo mais notícias deles.
Chegamos a uma parte da galeria tão cheia de lixo, que
precisamos andar de gatinhas se quisermos explorar alguma
coisa a mais nessa direção.
Encontramos uma escada lúgubre e perigosa, que conduz a
um labirinto de galerias e criptas mais para baixo. Se
explorarmos estas, encontraremos o terceiro e algumas vezes o
quarto grupo de escavações, umas por baixo das outras. Acha-
se aqui um lugar mais largo, espécie de sala ou átrio, donde se
ramificam quatro galerias. O teto desse átrio acha-se um
pouco abobadado e existe uma corrente que em algum tempo
susteve uma lâmpada. Aqui estão os túmulos mais em ordem e
com inscrições que se referem a homens e mulheres santas e
com esculturas primitivas e desenhos simples de assuntos
bíblicos.
É o lugar de ajuntamento onde os cristãos primitivos se
reuniam para adorarem ao seu Deus e Salvador. Mas o que
será que faz o ar mais fresco e a respiração mais fácil neste
lugar? A atmosfera não está tão quente, abafadiça e em-
poeirada. Vede, em cima uma abertura e de vem
alguma luz; é uma das
luminárias cripta,
ou poços, que
iluminavam e ventilavam estas moradas subterrâneas e que
ainda se encontram, com intervalos, perfurando o solo
(32) Palavra híbrida, composta de grego e latim, não encontrada em escritores clássicos,
significando
dois corpos;
toma-se como latina nestas páginas e declina-se. portanto, como tal.
ao redor de Campagna, perto de Roma. Elas indicam a ex-
tensão e a direção das galerias subterrâneas.
Com satisfação subireis agora para o ar livre enquanto vos
conto alguma coisa da
extensão
destas catacumbas. Alguns
dos cemitérios contêm galerias que se estendem
provavelmente a três ou quatro quilômetros, com ramais em
diferentes direções. Diz um viajante alemão do século passado
que visitar todas as partes das Catacumbas de S. Sebastião,
seria encarregar-se de dar um passeio de mais de trinta
quilômetros, parecendo a ele que, se somasse o comprimento
de todos os corredores, criptas e galerias, poderia chegar a
cento e sessenta quilômetros nesta Roma subterrânea. E no
tempo em que ele visitou as Catacumbas, muitas galerias
estavam fechadas, por terem morrido algumas pessoas que
por ali se tinham perdido (33).
No ano de 1798, um grupo de oficiais franceses, discípulos
ateus de Voltaire e Rousseau, visitaram as Catacumbas.
Embriagaram-se nas criptas sepulcrais e cantaram os seus
hinos bacanais entre os cadáveres dos cristãos, e um deles, um
jovem oficial de cavalaria, "que não temia a Deus, nem ao
diabo, pois não cria nem num, nem noutro", resolveu explorar
as galerias mais remotas. Mas perdeu-se e foi abandonado
pelos seus companheiros. A sua imaginação excitada exagerou
os horrores naturais da situação. Andando às apalpadelas na
escuridão, ele não tocava senão em paredes úmidas ou em
ossos antiquados, que lhe produziam arrepios horrorosos. Via-
se condenado a ficar assim enterrado vivo. O seu ceticismo
desapareceu nesta hora de perigo: não podia mais rir-se da
morte como um sono eterno. A sua alma ficou cheia de um
temor solene. Aquele oficial foi salvo no dia seguinte, mas
ficou doente por muito tempo. Quando, porém, se levantou,
estava outro inteiramente. Morto na batalha de Calábria, sete
anos depois, acharam perto do seu coração um exemplar do
Evangelho.
Ainda em 1837, um grupo de estudantes, com o seu pro-
fessor, perfazendo ao todo, dizem, trinta pessoas, entrou
(33) Keyster,
Viagens na Alemanha,
citado nas
Catacumbas de Roma,
de Macfarlane. p.64 e
seguintes.
72
nas Catacumbas numa excursão em dia feriado, e perderam-
se naquele labirinto. Fez-se depois uma busca rigorosa, mas
sem resultado algum.
É claro que ainda não foram descobertas e exploradas
todas as Catacumbas; durante a ocupação de Roma pelos
franceses foram feitas novas descobertas e ainda hoje con-
tinuam a ser feitas. Um abalizado arquiteto francês trouxe
para Paris grandes coleções de desenhos de obras de arte, que
foram depois publicados pelo governo francês.
Withrow declara, na sua recente obra, que se conhecem
nada menos de quarenta e dois cemitérios, subterrâneos
semelhantes, muitos dos quais apenas parcialmente aces-
síveis. Michele de Rossi, de um acurado reconhecimento que
fez nas Catacumbas de Calixto, computa o comprimento total
de todos os corredores daquelas Catacumbas em oitocentos e
setenta e seis quilômetros, ou seja, muito mais que todo o
comprimento de Portugal, de norte a sul (34). Isto mostra que a
Roma subterrânea é maior em extensão que a moderna cidade
dos Césares.
À primeira vista, é difícil calcular o vasto número de
pessoas, todas cristãs, que acharam sepultura sob a cidade e
arredores, em Campagna. Withrow diz: "Acharam-se cerca de
setenta mil inscrições; porém é uma pequena fração do todo,
pois uma pequena parte desta metrópole foi explorada". O
padre Marchi calcula em dez, cinco de cada lado, o termo
médio de sepulturas por cada sete palmos de galeria. Sobre
esta base, computou em sete milhões o número total das
Catacumbas. O cálculo mais apurado, feito por Rossi, é cerca
de quatro milhões de sepulturas. É espantoso! Lembremo-nos,
porém, de que durante trezentos anos, ou dez gerações, toda a
população era, ainda mesmo no período primitivo, dum
número considerável. No tempo das perseguições, também os
cristãos eram levados em multidões, para os túmulos. Nesta
silenciosa cidade dos mortos, vemo-nos cercados por uma
"poderosa nuvem de testemunhas", uma multidão que
ninguém pode contar, cujos nomes, desprezados na terra, que
foram inscritos no
(34) Withrow,
Catacumbas,
pp.14 e 15.
Livro da Vida.
Para cada habitante que hoje pisa o solo de
Roma centenas de habitantes primitivos, cada um na sua
tumba, até que venha o dia do arrebatamento.
Agora vamos tratar do
uso e conteúdo das Catacumbas.
Eram usadas, como foi dito, para refúgio nas perseguições
que, começando no tempo de Nero, contra os primeiros
seguidores de Cristo, continuaram com intervalos, durante os
três primeiros séculos, até terminarem no ano 311 por um
edito de Galério. Este imperador estava atacado de uma
terrível e incurável doença, que nem os médicos nem os ídolos
pagãos tinham podido aliviar. Mandando pedir aos cristãos
para orarem por ele, proclamou o edito, que terminou a
perseguição paga contra o Cristianismo no império romano.
Durante todo aquele longo período, estas cavernas e galerias
foram usadas como lugares de sepultura de cristãos romanos,
muitos dos quais também ali residiam durante o período em
que a fé em Cristo era proscrita e perseguida.
Depois da proclamação do edito de Galério e da profissão
do Cristianismo por Constantino, pouco tempo depois, seguiu-
se, necessariamente grande mudança quanto ao uso das
Catacumbas. Os cristãos, não mais uma religião proscrita e
perseguida, saíram dos esconderijos, para gozar a luz e
respirar o ar puro; aqueles que daí em diante visitaram as
Catacumbas o fizeram por um sentimento de veneração pelos
mártires e pelas pessoas santas, cujos corpos estavam
enterrados, e, com um grau de superstição facilmente
compreendido, faziam cultos nos túmulos, nas capelas das
Catacumbas, rodeados pelos restos mortais dos outros
cristãos. Outros procuravam para os seus mortos queridos
uma sepultura entre os túmulos dos cristãos perseguidos, que
consideravam com tanta veneração.
Estamos, portanto, preparados para encontrar duas
classes de monumentos na nossa visita às Catacumbas: Os
que foram construídos pelos cristãos indefesos durante os
primeiros três séculos, e os que foram colocados nas Cata-
cumbas durante o tempo da tolerância e do estabelecimento
do Cristianismo pelos que as visitaram para ornamentar os
túmulos e capelas em honra dos mártires. Entre os primeiros
esperamos encontrar provas de uma pura, primitiva e
incorrupta, ao passo que entre os últimos, não devemos ficar
surpreendidos se encontrarmos indicações daquela
decadência da e das práticas primitivas que distinguiu a
era de prosperidade material da Igreja, tão evidente e notada
nos séculos subseqüentes.
O estabelecimento do Cristianismo em Roma foi logo se-
guido pela erupção daquelas hordas bárbaras que derribaram
a cidade de Roma em busca de tesouros, e saquearam, as
sepulturas das Catacumbas até onde elas eram acessíveis.
Perdeu-se todo o conhecimento das suas sinuosidades;
somente os bandidos e os ladrões utilizavam-se delas,
transformando-as num lugar de terror para os pacíficos. A
guerra, a comoção intestina e o desacordo social continuaram
por muitos séculos em Roma. Com o aumento e excessiva
vegetação resultantes perderam-se as entradas das
Catacumbas. De tempos em tempos algumas eram tapadas
com paredes para o serem usadas por ladrões ou conspira
dores contra o governo.
Apesar de tudo isso, um mar de luz tem caído sobre as
Escrituras Sagradas durante os últimos cem anos. A Assíria,
com as suas mais antigas capitais - a cidade de Ninrode, o
grande caçador - deixou-nos conhecer a sua história e a sua
língua muito perdidas. O Egito descobriu-nos os seus
segredos escritos em hieróglifos e em letras hieráticas e
confirmou, em muitos pontos importantes, as declarações das
Escrituras quanto à terra dos Faraós! Sepultadas por séculos,
estas testemunhas levantaram-se dos seus mulos para
testificar a autenticidade e a exatidão dos escritos inspirados.
Mas uma nova ressurreição verificou-se no período mais
negro da Igreja Cristã: a terra abriu o seu seio dentro e a
primitiva Igreja de Cristo saiu de sua sepultura de séculos,
para afirmar a pureza, beleza e poder do Cristianismo. A
testemunha estava então envolta nos mantos nebres de
inacessíveis fortalezas, com inscrições em línguas mortas,
entendidas por poucos, mas despertou.
4
As Catacumbas e o seu
Testemunho
"Escondidos nas covas e nas cavernas da terra",
Hebreus 11.38.
Em meados do século XVI - cerca de mil anos depois de
deixarem de servir de cemitério aos cristãos - levantou-se
grande interesse pelas Catacumbas e pelo seu conteúdo.
Algumas foram abertas e exploradas. Pelo ano de 1578, foram
muitas desobstruídas, limpas e iluminadas. Naquele tempo
agitava-se na Igreja Romana uma controvérsia a propósito de
relíquias e, por isso, deu-se ênfase ao conteúdo desses
sepulcros que acabavam de ser redescobertos.
Os arqueólogos prosseguiram nas suas investigações com
profundo interesse. Bosio, italiano, gastou
mais de trinta anos
explorando as galerias, colecionando antigüidades e copiando
inscrições e pinturas. Morreu ao completar a sua grande obra
intitulada
Roma Soterrânea,
publicada depois da sua morte e
vertida para o latim por Aringhi. No ano de 1720 foi publicado
um outro livro por Boldetti sobre as Catacumbas; este
infatigável
explorador também consumiu mais de
trinta anos
da sua vida
em investigações subterrâneas.
Neste ramo de estudos outros seguiram a Bosio e a Bol-
detti: foram os italianos Bottari, Marangoni e Fabreti e os
franceses Agincourt e Raoul Rochette. O primeiro dirigiu-se a
Roma com intenção de passar
seis meses
em estudos; achou-
os, porém, tão empolgantes e vastos que permaneceu
cinqüenta anos,
e quando morreu, preparava matéria para
uma obra que foi publicada depois. Todas essas obras, escritas
em línguas estrangeiras, ou mortas, e acessíveis somente aos
que podem consultar bibliotecas, são pouco conhecidas do
público em geral. Muita gratidão se deve, portanto, ao Dr.
Carlos Maitland por traduzir para a língua inglesa uma obra
instrutiva e profundamente interessante, intitulada
A Igreja
nas Catacumbas ( 1 ).
difícil agora", diz o autor, "sentir as impressões que
tiveram os primeiros exploradores desta cidade subterrânea;
uma vasta necrópole, repleta de ossos de santos e mártires,
testemunho estupendo da veracidade da história cristã, e, por
conseqüência, do próprio Cristianismo; registro fiel dos
sofrimentos da igreja perseguida... Agora temos de recorrer
aos museus de Roma e às obras dos arqueólogos para
compreender o estado das Catacumbas naquele tempo, isto
devido à remoção de tudo que era móvel para lugares de maior
segurança e de acesso mais fácil, e também pela dificuldade de
examinar pessoalmente estas galerias perigosas.
Os monumentos, inscrições e outras antigüidades re-
movidas das Catacumbas, estão depositadas principalmente
no Museu do Vaticano em Roma. O Museu Cristão contém
muitos sarcófagos, baixo-relevos, inscrições e medalhas; porém
a coleção mais valiosa de inscrições é a da Galeria Lapidaria,
corredor extenso daquele museu, cujos lados estão
completamente cheios de ladrilhos assentes nas paredes. Há,
contudo, um contraste sensível entre as duas paredes desse
corredor e as emoções que é provável
( 1) The Church in the Catacombs,
descrição da igreja primitiva em Roma. ilustrada com
relíquias sepulcrais.
se produzam no ânimo dos visitantes inteligentes. À direita
acham-se as inscrições
pagas,
e no lado oposto aparecem mais
de três mil epitáfios dos primitivos cristãos.
"Consumi", diz Raul Rochette, "muitos dias inteiros neste
santuário arqueológico, onde o sagrado e o profano se
contemplam nos preservados monumentos escritos, imagem
dos dias em que o Paganismo e o Cristianismo, cada um
pondo em ação todo o seu poder, se debatiam em conflito
mortal. 0 tesouro das impressões que recebemos desta imensa
coleção de epitáfios cristãos, tirados das sepulturas das
Catacumbas e agora colocados nas paredes do Vaticano, é
uma fonte inesgotável de prazer e alegria para toda a vida" (2).
As inscrições neste museu e nos museus contíguos são
testemunhas que apresentamos para provar o que era o pa-
ganismo do passado e o que é o Cristianismo do presente. Não
se deve, contudo, julgar que as três mil inscrições da Galeria
Lapidaria são as únicas que chegaram até nós. Calcula-se que
as Catacumbas continham
setenta mil
inscrições, que foram
removidas ou copiadas em diferentes ocasiões (3), e
recentemente já se descobriram mais algumas centenas.
(2)Raul Rochette,
Tableau des Catacombs,
p.10.
(3) Maitland, p.16.
As inscrições acham-se principalmente sobre pedras de
granito ou de mármore, usadas para fechar as sepulturas e
colocadas de cada lado das galerias referidas. Nas páginas
subseqüentes há inscrições que trazem luz sobre as sepulturas.
O exemplo visto na página antecedente mostra, numa
sepultura, um esqueleto quase inteiro; noutra, apenas um
pouco de pó, lembrando a sentença proferida sobre os nossos
corpos mortais: "Tu és pó, e em te hás de tornar". A
inscrição na sepultura da página anterior diz: VALÉRIA
DORME AQUI EM PAZ.
Na pedra inferior distingue-se uma folha e palma tos-
camente desenhadas. O tamanho das pedras medeia entre um
e três pés de comprimento e as letras gravadas nelas regulam
de um a oito centímetros de altura e são riscadas ou abertas
na pedra e o sulco é geralmente cheio de vermelho de Veneza.
Temos traçado o paganismo e nos esforçado por descrever
o Cristianismo como foi introduzido pelo seu Fundador: o
Cristianismo do Novo Testamento. Temos também levado os
nossos leitores para dentro dos esconderijos de alguns dos
seus primitivos seguidores. Adiando por um pouco de tempo
algumas explicações sobre as inscrições e os sinais, que
seriam, sem isso, misteriosas e enfadonhas, desejamos
salientar um
contraste
que aquelas testemunhas mudas - os
túmulos dos cristãos primitivos - nos habilitam a traçar entre
os dois sistemas: pagão e cristão. Em nada é a diferença mais
surpreendente que no sentido
em que a morte é encarada
pelos seguidores das duas crenças.
Para o pagão, é o término de tudo o que é desejável, gerando
nele um sentimento de desânimo ou de vingança contra o
Grande Autor da vida. Para o cristão, no entanto, a morte é
paz, esperança, previsão de felicidade e indicação de triunfo.
Alguém disse com razão: "Voltai-vos nas Catacumbas para
onde quiserdes: tudo é Paz, Paz, Paz".
Transcrevemos alguns epitáfios pagãos e cristãos para
provar a verdade deste dito:
CRISTÃO
(fragmento)
DEUS O DEU... O TI-
ROU... BENDITO!... DO
SENHOR, QUE VIVEU...
ANOS EM PAZ, NO
CONSULADO DE...
PAGÃO
EU, PROCÓPIA, LE
VA NT O AS MIN HA S
MÃOS CONTRA DEUS QUE
ME LEVOU INOCENTE
ELA VIVEU VINTE
ANOS. PROCLUS ERIGIU
ESTE.
Aqui a inscrição paga considera a morte como uma injúria,
mostrando-se todos ressentidos contra Deus; e o mesquinho
braço do homem levanta-se contra o Grande Árbitro do
Universo. O epitáfio cristão, ainda que um simples fragmento,
fala de outra maneira. Fala de submissão implícita, de
resignação e de paz. "O resto da inscrição", diz o Dr. Maitland,
"foi destruído até onde o mármore é destrutível; porém, o
sentimento imortal que prevalece na sentença supre a perda.
Como uma voz entre os sepulcros, quebrada pelos soluços mas
distintamente inteligível, as palavras penetram no ouvido:
O
Senhor o deu, o Senhor o tirou. Bendito seja o nome do Senhor!"
( 4 ) .
Este mausoléu dos cristãos primitivos faz-nos lembrar a
prática de inscrever textos nas sepulturas, o que se tornou
comum também nas nossas sepulturas modernas de cristãos.
Outra vez queira o leitor notar o contraste: Na inscrição paga
ouve-se a voz da murmuração e do desânimo: a mãe chorando
pelo filho e sem conforto, porque ele não existe. No epitáfio
cristão, tudo é diametralmente oposto. O marido e filhas doridas
consolam-se com a convicção de que a falecida
"vive em Deus"
e
são convidados a enxugar as suas lágrimas pela afirmação - tão
belamente expressada tanto no túmulo como pelo apóstolo -de
que o cristão não deve chorar como os pagãos que não têm a
esperança da imortalidade. "Não queremos, irmãos, que ignoreis
coisa alguma acerca dos que dormem,
para que não vos
entristeçais como o fazem os outros que não têm esperança.
Porque se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim
também Deus;trará com Jesus aqueles que dormiram nele" (5).
( 4) The Church in the Catacombs,
de Maitland. p.14.
CRISTÃO
PETRONIA, ESPOSA DE
UM DIÁCONO, TIPO DE
MODÉSTIA.
NESTE LUGAR DEITO OS
MEUS OSSOS. DEIXAI AS
VOSSAS LÁGRIMAS, CARO
MARIDO E FILHOS, E
CREDE QUE É PROIBIDO
CHORAR POR UMA QUE
VIVE EM DEUS.
ENTERRADA NO TER-
CEIRO, ANTES DAS
NONAS DE OUTUBRO,
DURANTE O CONSULADO
DE FESTO.
PAGÃO
CAIUS JULIUS MAXIMUS,
2 ANOS E 5 MESES (IDADE).
Ó INFORTÚNIO IM-
PLACÁVEL, QUE TE
DELEITAS EM MORTE
CRUEL, PORQUE ME FOI
MÁXIMO ARRANCADO TÃO
REPENTINAMENTE,
AQUELE QUE
ULTIMAMENTE SE
RECLINAVA NO MEU COLO?
ESTA PEDRA AGORA MARCA
O SEU TÚMULO.
EIS A SUA MÃE!
Onde se pode encontrar um contraste maior em senti-
mento do que o que existe em monumentos pagãos e cristãos
sobre a morte? O paganismo, não obstante as alusões de seus
poetas aos Campos Elíseos, para além das negras águas do
Estyge, não tinha esperança da imortalidade. Entre os muitos
milhares de epitáfios existentes em gabinetes e museus, ainda
não se achou uma única alusão a qualquer convicção definida
de imortalidade (6).
Cícero, escrevendo a um amigo a quem havia falecido um
parente, hesita em sugerir consolação baseada na crença na
imortalidade da alma. Tudo que ele diz é: "Ainda que
possamos
conjeturar
alguma coisa acerca desta imortalidade,
(5) ITessalonicenses 4.13,14.
(6) Numa obra de Basil H. Cooper,
A Igreja Livre na Antiga Cristandade,
está esta asserção
abundantemente confirmada. "O autor não encontrou um epitáfio sequer, nessas condições,
entre a seleção de mais de 750 mármores de sepulcros registrados na obra de Zell, ou na
grande obra de Bockh.
Corpus Inscriptionun Graecorum"'
Tom. 1-3, (p.17, nota).
é um assunto tão
completamente duvidoso,
que não me atrevo
a vos apresentar como um meio real e genuíno de consolação."
Um epitáfio que o Dr. Maitland nos apresenta, mostra-
nos como estava limitado a esta pobre terra o destino pagão e
como a vida era tida como um drama que, desempenhado,
estava acabado:
ENQUANTO VIVI, VIVI BEM. MEU DRAMA
TERMINOU, BREVE TERMINARÁ O TEU. ADEUS E
APLAUDE-ME.
Que diferente é o sentimento expresso nos seguintes epitáfios
das Catacumbas; neles a existência separada da alma e a
felicidade que goza, após a morte são tidas como certas:
NICÉFORO, UMA DOCE ALMA EM DESCANSO.
Outro:
LOURENÇO AO DULCÍSSIMO FILHO SEVERO, BEM
MERECECOR. LEVADO PELOS ANJOS NO VII ANTES
DOS IDOS DE JANEIRO.
A mesma idéia está belamente ilustrada na seguinte
inscrição no túmulo de um mártir, vitimado durante a per-
seguição Antonina, que começou cerca do ano 160. O original
está decorado com o monograma de Cristo e um ramo de
oliveira, e também exibe um vaso de fogo - talvez indicativo
do modo do seu martírio:
ALEXANDRE MORTO NÃO ESTÁ, MAS ELE VIVE
ACIMA DAS ESTRELAS, E SEU CORPO DESCANSA
NESTE TÜMULO. TERMINOU A SUA VIDA SOB O
IMPERADOR ANTONINO, QUE PREVENDO QUE
ADVIRIA GRANDE BENEFICIO DOS SEUS SERVIÇOS,
PAGOU O BEM COM O MAL, PORQUE, QUANDO ESTAVA
DE JOELHOS E PRESTES A ADORAR AO VERDADEIRO
DEUS, FOI LEVADO À EXECUÇÃO. OH! QUE TRISTE
TEMPO! NO QUAL, ENTRE RITOS E ORAÇÕES
SAGRADAS, MESMO EM CAVERNAS, NÃO ESTAMOS
SEGUROS! O QUE PODE HAVER DE MAIS DESGRAÇADO
DO QUE TAL VIDA E DO QUE TAL MORTE, QUANDO
NÃO PODEM SER ENTERRADOS PELOS SEUS AMIGOS E
PARENTES.
MAS BRILHAM NO CÉU. QUASE NÃO TEM VIVIDO
QUEM TEM VIVIDO EM TEMPOS CRISTÃOS.
A respeito deste interessante monumento, o Dr. Maitland
diz: "Vive acima das estrelas, e o seu corpo descansa neste
túmulo". Existe nesta combinação, tratando como coisas
igualmente tangíveis e reais o lugar de sua morada espiritual
e o do descanso do seu corpo.
também outros pontos na inscrição dignos de nota. As
primeiras palavras "Alexandre morto" depois de preparar-nos
para ouvir uma lamentação, são seguidas duma convicção de
glória e imortalidade; e ainda a descrição da insegurança
temporal em que os crentes daquele tempo viviam; a
dificuldade de conseguir sepulturas cristãs para os mártires; a
certeza de sua recompensa espiritual; e a sentença
forçosamente recordando as palavras de Paulo: "como
morrendo e eis aqui está que vivemos" (7). Verdadeiramente,
estas inscrições lançam mais luz do que todos os comentários
sobre esta passagem da Escritura:
"Cristo trouxe à luz a vida e
a imortalidade pelo Evangelho" (8).
Por outro lado, as inscrições pagas e cristãs, colocadas
frente a frente na Galeria Lapidaria, são muito ilustrativas
das duas religiões, como suas representantes mudas. Do lado
pagão encontra-se uma lista orgulhosa de nomes:
nomes,
pronomes e cognomes,
e de títulos hereditários, imperiais,
civis, militares e municipais. "O céu inteiro do paganismo está
glorificado por altares sem número onde os epítetos de invicto,
máximo e melhor, são dispensados às sombras indignas que
povoavam o Olimpo. O primeiro golpe de vista à parede oposta
basta para mostrar que "não muitos poderosos, não muitos
nobres" estão enumerados entre aqueles cujos epitáfios ali se
encontram e que aquelas inscrições, na maioria dos casos, são
os breves e simples anais dos pobres. O cristão sincero achava
suficiente ser reconhecido por aquele nome que lhe pertencia
como súdito
( 7) The Church in the Catacombs,
de Maitland. p.40 e 2 Coríntios 3.9.
(8) 2Timóteo 1.10.
to do reino celestial. "O primeiro nome somente era necessário
no cemitério; mas crescendo o número de cristãos, tornou-se
mister uma distinção mais clara" (9).
Notem-se as seguintes inscrições:
"O LUGAR DE FILEMON".
"VIRGÍNIO POUCO TEMPO ESTEVE CONOSCO". "O
LUGAR DE SEVUS PRIMA, PAZ SEJA CONTI
GO".
"MARTÍRIA, EM PAZ ZÓTICO AQUI POSTO A
DORMIR".
"O DORMITÓRIO DE ELPES GEMELA DORME EM
PAZ".
Resumamos os assuntos que temos considerado, antes de
tratarmos das ilações que deles podemos tirar.
Falamos das dúvidas e conflitos tenebrosos da natureza
humana, que suspira no meio de "trevas palpáveis" pela luz, e
pela libertação. Descrevemos a previsão de auxílio do Alto.
Apontamos o cumprimento de todas as esperanças e o
aparecimento do "Sol da Justiça" para alumiar os que vivem
assentados nas trevas, e na sombra da morte, para dirigir os
nossos pés no caminho da paz" (10). Contrastamos o ensino
deste Libertador com o ensino pagão de outrora. Falamos da
divulgação, mesmo em Roma, capital do mundo, da sua nova e
admirável doutrina. Referimo-nos, resumidamente, à sua
recepção e ao tratamento cruel que tiveram seus inofensivos
seguidores. Mostramos a vitória que a firme e a paciência
sofredora alcançaram sobre as potestades da Terra;
penetramos nas suas antigas habitações subterrâneas, usadas
como esconderijos (11); exploramos as suas galerias escuras e
emaranhadas; reparamos nos seus túmulos e inscrições, com
as quais nos deixaram a expressão simples da inabalável e
convicta num Senhor e Mestre crucificado e a sua convicção de
união com Ele e esperança certa e segura de uma ressurreição
dos mortos.
( 9) The Church in the Catacombs,
de Maitland, pp.12-15.
(10) Lucas 1.79.
(11) A palavra
cemitério,
que significa
lugar onde se dorme,
foram os cristãos das Catacumbas os
primeiros a usá-la.
O que nos ensina tudo isso? Prova-nos, sem dúvida, que há
um poder irresistível e extraordinário no Cristianismo puro.
Reflitamos por alguns momentos no estado dos partidos e
sistemas predominantes em Roma, sempre em conflito mortal
uns com os outros, durante a ocupação das Catacumbas: Dum
lado se impunham
todos os poderes do mundo
- os
imperadores de Roma, cuja vontade fazia lei; um exército
poderoso, toda a riqueza de Roma, todo o talento da filosofia e
da ciência assim chamada falsamente"; um sacerdócio, cuja
influência se estendia a todos os limites do império e cujo
poder excedia talvez o do próprio imperador; todos os
governadores, a grande maioria do povo, e o prestígio da
antigüidade a favor de uma religião admiravelmente
adaptada ao degenerado coração humano. Do outro lado
achamos uns homens pobres, iletrados e desprezados,
escondidos em "cavernas da terra", sem armas, ou recusando
utilizá-las; dizimados por perseguições repetidas. Estes
opunham-se aos seus inimigos, não com armas carnais, mas
abençoando-os e orando por eles. Contudo, achamos mais de
um imperador declarando que eram
incorrigíveis,
ou por
outras palavras,
invencíveis.
Repetidas vezes foram publicados editos para exterminar da
terra os cristãos. Levantaram até monumentos para celebrar e
perpetuar os supostos êxitos das perseguições. Aqui estão duas
preservadas inscrições desses monumentos em escritos da
época:
DIOCLECIANO CÉSAR AUGUSTO, TENDO ADOTADO
GALÉRIO NO ORIENTE. A SUPERSTIÇÃO DOS CRISTÃOS
FOI DESTRUÍDA EM TODA A PARTE E PROPAGADA A
ADORAÇÃO DOS DEUSES.
Outro:
DIOCLECIANO JÓVIO, E MAXIMIANO HÉRCULES
(CÉSAR AUGUSTO): O IMPÉRIO ROMANO AUMENTADO
POR TODO O ORIENTE E OCIDENTE, O NOME DOS
CRISTÃOS, QUE ESTAVAM DERRUBANDO A REPÚBLICA
ROMANA, APAGADO (12).
(12) Segundo Gruter, estas inscrições foram encontradas na Espanha em duas colunas. São citadas
na
General Church History,
de Neander (vol.l. p.210).
Nunca se achou na história do mundo caso tão patente de
falta de visão no homem e da irresistibilidade da providência
de Deus. Dentro de dez anos, depois do reinado de
Diocleciano, a
superstição destruída em toda a parte e o nome
apagado,
vieram a ser religião prevalecente e estabelecida no
império romano. A semente lançada na terra, trazendo em
si a vida divina regada continuamente com a bênção do Céu,
brotou logo e mostrou o seu poder, derrubando o sistema
degenerado que tinha impedido por certo tempo o seu
progresso.
Alguém poderá objetar que, se o Cristianismo é divino, por
que não chegou mais cedo ao mundo? A isso a resposta é: Deus
é soberano. "Ele opera como quer nos exércitos celestiais, e
entre os habitantes da Terra". Ninguém tem o direito de lhe
perguntar: "Que fazes?" Mas, além desta resposta geral,
razões evidentes que explicam porque a vinda de Cristo foi
retardada.
Não haverá um sinal da sabedoria divina na demora do
plano da salvação, até que o homem se convencesse por
completo da nulidade dos seus próprios esforços? O homem é
tão soberbo, tão cheio de si, que foi uma lição dei-lo
experimentar uma religião sua, cheia das suas idéias, antes
de Deus intervir a seu favor. Não é isso o que fazemos com os
que entre nós se mostram orgulhosos? "Deixai-os andar à
vontade, dizemos, "que experimentem os seus próprios
remédios; e quando descobrirem que precisam de auxílio, o
aceitarão de bom grado".
Pensamos que quando se passarem mais alguns milhares
de anos - e para Deus são como um dia - todos admitirão que a
agitada infância deste mundo, a sua desordem moral e seus
almejos de paz e de ordem, não terão deixado de ser úteis,
como as convulsões caóticas da superfície física da Terra em
séculos passados estão agora suprindo as nossas necessidades,
alimentando o nosso conforto e contribuindo para o progresso
humano. Podíamos mostrar, se o espaço no-lo permitisse, que o
período escolhido para a missão de Cristo foi admiravelmente
adaptado ao seu objetivo.
O mundo tinha vindo a ficar sob o domínio de um único
imperador, cuja política tolerava todas as religiões. De ma-
neira que o Cristianismo foi levado, no princípio, às ardentes
areias da índia, bem como às neves da Sibéria. As Escrituras
e profecias judaicas tinham sido traduzidas para o grego e a
literatura daquela nação culta tinha sido profusamente
espalhada por todo o mundo. As desgraças que tinham
sobrevindo à Palestina haviam espalhado os judeus por "todas
as nações debaixo do céu". Todas estas circunstâncias
concorreram para propagar mais o Cristianismo, ao mesmo
tempo que indicavam que a "plenitude dos tempos tinha
chegado".
Outros poderão dizer: Se o Cristianismo era de Deus, por
que não derrubou logo o paganismo e não o destruiu completa
e imediatamente? Deus não procede, em geral, assim, nem no
mundo material, nem no espiritual. Os terremotos e tufões
não são os seus meios
ordinários,
mas
extraordinários.
A
razão por que Deus não faz assim não é da nossa conta;
contudo poderemos estudar a seguir as suas obras na
natureza, e acharemos que concordam com as obras da sua
providência. "Deus tem a eternidade perante si", diz Santo
Agostinho, "e pode esperar". O seu tempo não é limitado como
o do homem, que, se tem alguma coisa a fazer, quer fazê-la
logo, pois a noite vem. Porém, não é assim com Deus: Ele
opera, em nosso pensar,
deliberada, segura e
irresistivelmente.
Consideremos um exemplo da sua maneira de proceder:
colônias de celenterados marinhos amontoam-se umas sobre
as outras por milênios e vão emergindo das águas recifes de
corais. As aves marinhas pousam nesses recifes e as ervas do
mar são atiradas sobre elas e contribuem para a formação de
um solo; a ação vulcânica, muito ao fundo, gradualmente
transforma a superfície em morros e vales. Uma ave deixa cair
uma semente aqui: uma onda atira outra a uma praia, e uma
graciosa palmeira, a útil fruta-pão e a laranjeira levantam-se
e, com outras, formam uma floresta. Porém, passaram-se
milhares de anos desde que a obra teve início.
Repare-se ainda nisto: Uma canoa é levada para fora do
seu curso pela corrente: uma ilha povoa-se, os seus
habitantes estão nus, são selvagens idolatras e sanguinários;
e passam-se outros mil anos. Outra vez muda a cena; acha-se
à vista um navio estranho, que larga um bote; desembarcam
homens civilizados, que fazem tratado de paz e de
reciprocidade. Os habitantes vestem-se e edificam habitações
convenientes; faz-se uma linguagem escrita
Monta-se uma tipografia; imprime-se o
Livro da Verdade:
a
vida é regulada por ele. Por isso, "lançaram os seus ídolos de
prata às toupeiras e aos morcegos" (13); "destruíram os seus
altares sangrentos; converteram as suas espadas em enxadões
e as suas lanças em foices" (14).
0 propósito de Deus cumpriu-
se, porém passaram-se milhares de milhares de anos!
Não devemos contar os anos de Deus como contaríamos os
poucos dias a nós reservados. "Não retarda o Senhor a sua
promessa como alguns entendem"(15). Tenhamos cuidado de
não querer medir com o nosso fraco alcance a profundidade do
infinito e a extensão e largura da eternidade, lembrando que
os juízos de Deus são muito profundos. Aprendamos, portanto,
que quando Deus trabalha, ninguém o pode impedir; contudo
Ele trabalha como o Eterno Deus.
Assim trabalhou Ele e assim ainda trabalha com relação
ao Cristianismo, agência divinamente planejada para a
regeneração do mundo. Lançou fora o paganismo do império
romano. Está operando agora no paganismo Oriental e
Ocidental e minando e suplantando as religiões falsas e as
superstições de todo o mundo.
Concluindo, devemos ser gratos pelo que o Cristianismo
tem alcançado. Teria feito mais, se não fosse o que se deu e
que assinalamos no capítulo anterior; mesmo assim, os seus
efeitos benéficos estão de tal modo evidentes que requerem a
nossa gratidão.
O paganismo foi lançado fora de entre nós com sua
crueldade, seus sacrifícios humanos e seus ritos revoltantes.
(13) Isaías 2.20 (A).
(14) Isaías 2.4 (A).
(15) 2Pedro 2.9.
Os horrores da guerra estão moderados. Em lugar do
infanticídio sistemático, temos maternidades para as mães; e
abrigos para os órfãos abandonados. Agora estende-se a
misericórdia aos pobres e infelizes. Temos refúgios para os
extraviados, idiotas e dementes; hospitais para os feridos,
doentes e moribundos. O suicídio e a vingança, outrora
considerados atos dignos, são agora humilhantes e ilegais.
A mulher tem sido elevada ao nível que lhe foi designado;
em vez de um estorvo e escrava do homem, é hoje entre nós
igual a ele; é o ornamento e a felicidade da casa. E quanto a
nós, como parte integrante de uma grande massa de povo,
quanto tem o Cristianismo melhorado a nossa posição e o
nosso caráter moral!
Se tivéssemos vivido naquele tempo de trevas do paga-
nismo, como nos divertiríamos? Com toda a probabilidade
estaríamos apreciando cenas sanguinárias ou fazendo pouco
caso dos gritos e gemidos dos desamparados, dos feridos e dos
moribundos. Talvez estivéssemos gritando: "Cristãos às feras!"
Ou estaríamos fazendo distúrbios, porque alguma nova vítima
que tivesse de ser despedaçada com os
ungulae
(16), nos fora
negada. Se não fosse a graça de Deus, seríamos indiferentes
aos sofrimentos humanos; estaríamos impregnados como dos
sentimentos da época, e repetidamente ordenando a execução
de qualquer criatura, talvez tão desgraçada que
dificilmente pudesse considerar a morte como um mal. Ou se,
iluminados pela luz do Evangelho brilhando em nossos
corações, ocupássemos a posição mais invejável de timas,
estaríamos a servir de divertimento a todas as classes sociais
da Roma paga, dando a nossa vida no seu Coliseu.
Alguns poderão objetar que a
escravatura
foi praticada até
pouco tempo em alguns países por pessoas que se diziam
cristãs, tendo sido acompanhada de muitas das suas formas
mais revoltantes. Não o podemos negar. Quem pode ignorar
esse fato doloroso? A incongruência era, porém,
(16) Instrumentos de ferro, semelhante a uma garra ou mão. usado para rasgar e dilacerar as
carnes.
o evidente que causou os mais veementes protestos. O
adversário do Cristianismo tem razão de apontar essa chaga.
Mas a verdade é que logo que o Cristianismo obteve poder
na Terra, principiou a minorar males que não podia
imediatamente subjugar. A libertação dos escravos era tão
considerada entre os cristãos, que o primeiro imperador
cristão honrou o ato, exigindo que as emancipações fossem
anunciadas
pelo bispo perante a Igreja reunida.
A escravatura
caiu no mundo - não repentinamente, mas pouco a pouco - à
medida que o Cristianismo se espalhava.
No período de Augusto, calcula-se que cerca de metade dos
vinte e oito milhões de europeus, gemeu debaixo da mais cruel
escravatura. Atenas, a cidade mais refinada do mundo - o
decantado centro da liberdade
- no auge de sua prosperidade
contava com 421.000 habitantes. Desses, 400.000 eram
escravos!
Do predomínio numérico de escravos sobre livres em
Roma, já falamos. Onde estão os escravos agora? Se viajarmos
das Colunas de Hércules ao Danúbio, e do extremo norte ao
sul da Itália, não acharemos um único escravo na Europa. O
mesmo pode-se dizer da América.
um outro fato: O Cristianismo, como é bem conhecido,
não conservou o seu estado primitivo. O ouro fino escureceu; e
muitos dos antigos males voltaram a afligir a humanidade;
entre eles a escravidão, que voltou ao seu tráfico habitual.
O tráfico de escravos na África reapareceu, e muitas
nações que professavam o Cristianismo sustentaram esse
tráfico legalizado de carne humana. Porém, isso não foi
consentido sem protestos, o que nunca acontecera nos tempos
pagãos; os defensores do erro estavam condenados a ouvir as
murmurações e as queixas, e mais tarde, os protestos de
indignação e as denúncias do crime; de políticos e patriotas.
E o resultado está: A escravidão foi abolida por todas as
nações cristãs, embora que, para isso, algumas tivessem de
fazer sacrifícios.
A escravidão agora é repelida por todos os estados cristãos,
existindo mesmo entre eles tratados de cooperação para
impedir esse mal nos outros estados. Tão certo como o nascer
do sol dispersa as trevas, a sublime doutrina do "Sol da
Justiça" proclamou a "liberdade ao cativo e abriu a prisão aos
que se achavam prisioneiros".
Se o Cristianismo efetua tais mudanças nos hábitos,
gostos e condições do homem, se tem realizado tudo que
indiquei neste capítulo - e a minha consciência não me acusa
de ter exagerado os seus resultados - então direi em
conclusão: - Não rejeitemos levianamente o seu direito a ser
considerado religião divina. Antes mostremos a nossa
gratidão, estudando com maior fervor o seu caráter e pene-
trando mais profundamente o seu espírito, ao mesmo tempo
descansando sem hesitação no seu poder para realizar a
felicidade na Terra.
Selo cristão primitivo
5
Os epitáfios
das Catacumbas
"Pela fé venceram reinos, exercitaram justiça, da fraqueza
tiraram forças", Hebreus 11.33,34.
Quando nos lembramos que Paulo nos diz (1) que "cha-
mados não foram muitos sábios segundo a carne, não muitos
poderosos, não muitos nobres" para professar o Cristianismo,
estamos preparados para achar que as inscrições das
Catacumbas não devem ser estudadas como modelos de
elegância clássica; pelo contrário, são muitas vezes simples
em extremo e denunciam a ignorância daqueles que as
ditaram e dos que executaram o trabalho.
Em certo caso a inscrição foi feita de modo inverso, exceto
a letra
n,
de maneira que deverá ser lida de trás para diante,
a fim de se conseguir o sentido. É um epitáfio levantado a
ELIA VINCENTIA, MULHER DE VIRGlNIO.
(1) ICoríntios 1.26.
92
O marido, se vivia quando a inscrição foi feita, não devia saber
ler e não parece ter tido amigo capaz de lhe apontar o erro.
Geralmente acha-se a ortografia muito defeituosa e a sintaxe
muitas vezes tão errada como a ortografia, e, por isso, é
freqüentemente difícil apanhar o sentido. Com muita
freqüência colocam B em lugar de V. Há, por exemplo, a
seguinte inscrição:
O sentido é: "Bisomo (sepultura dupla) de Sabino; ele
mesmo a fez durante a sua vida, no cemitério de Balbina, na
nova cripta".
Aqui há o 6 colocado em lugar de
v
em
bibum; um
em lugar
de o, como terminação da mesma palavra, que deveria ser
vivo; cemitério
está escrito
cymiierium: Balbinae,
está escrito
bem, exceto o
l,
que está às avessas. Um crítico mal informado
intercalou um
r
e um f, o que tornou a emenda pior que o
soneto; na palavra
nova,
o
v
está substituído por um b.
Não falaremos mais sobre a parte literária, pois ma-
téria mais importante e mais interessante que precisa da
nossa atenção. Diremos somente que palavras ditadas em
grego acham-se muitas vezes escritas com letras romanas, ao
passo que palavras romanas aparecem também muitas vezes
escritas com letras gregas. Por vezes as duas línguas acham-
se misturadas. Assim: PRIMA IRENE SOE é grego em letras
latinas, querendo dizer: "Prima, paz seja contigo!"
o parece ter sido costume colocar datas em sepulturas;
muitas delas, contudo, dão os nomes dos cônsules romanos
reinantes, por onde se podem descobrir as datas, visto terem
chegado até nós as listas dos cônsules. A pedra mais antiga
contendo a data consular parece ter sido erigida no ano 71,
isto é, cerca de 36 anos depois da morte de Cristo. Outras
datam dos anos 107 e 111, pouco depois da morte do discípulo
amado, João. vinte e três epitáfios datados do terceiro
século; mais de quinhentos do quarto e outros tantos do
quinto; e cerca de trezentos datados da primeira parte do
sexto; somente sete epitáfios representam o sétimo século.
Daqui não se deve concluir que nenhum cristão fosse
enterrado nas Catacumbas antes do ano 71, apesar de não se
encontrar data anterior mencionada. Milhares de sepulturas
nada mais contêm do que um nome e algum símbolo de em
Cristo ou de esperança na ressurreição.
Withrow informa que das onze mil inscrições existentes,
somente 1384 têm datas. Estabelece mais, que Rossi chegou à
conclusão de que cerca de seis mil epitáfios pertencem aos
primeiros quatro séculos e foram encontrados nas
Catacumbas (2). As inscrições cristãs quase em geral nada
mencionam sobre o lugar do nascimento ou a pátria dos
falecidos, como que em reconhecimento de que a verdadeira
pátria dos cristãos é além-túmulo. No índice de Epitáfios de
Esquire, de cinco mil, somente quarenta e cinco mencionam a
nacionalidade dos falecidos (3).
(2) Withrow, p.408 e 409.
(3) Withrow, p.412.
94
Havia uma corporação cujo fim era fazer as sepulturas e
tratar de tudo que dizia respeito aos enterros. Chamavam-se
fossors.
Veio a ser uma corporação regularmente organizada
de coveiros e guias, e provavelmente tomavam conta das
lâmpadas que se têm achado em nichos ou em pedras a
intervalos certos. Os
fossors
não somente faziam túmulos,
mas vendiam-nos também.
A pintura reproduzida na gravura desta página é da
Catacumba de Calixto e a inscrição no alto diz assim:
O
fossar
representado na pintura tem em uma das mãos
uma picareta e na outra uma lâmpada provida de um gancho
para espetar na parede; no chão estão as ferramentas próprias
do ofício: ferramentas cortantes, martelo e compassos para
marcar as sepulturas. O vão atrás representa sepulturas
cobertas das respectivas pedras. Aos pés está uma sepultura
aberta. O X grego na sua roupa, a letra inicial do nome de
Cristo, que indica a profissão cristã; e as pombas com os
ramos de oliveira simbolizam a paz em que aquele
fossor
descansa.
A outra gravura na página representa uma pedra que nos
diz que os
fossors
ou coveiros vendiam e faziam cessão de
sepulturas e também nos uma idéia dos preços que se
pagavam.
Esta forma de trespasse, perfeita e concisa, poderia ser
estudada com vantagem pelos nossos modernos tabeliães. O
preço pago pela sepultura seria em ouro uma libra e um
oitavo de libra. Calculando pelo câmbio do dia é fácil ter o
preço aproximado.
QQ
fiz notar que poucas pessoas de alta cultura aceitaram a
Cristo nos primeiros tempos da Igreja, e por isso muitos não
sabiam ler as inscrições. Como podiam então os amigos e
sobreviventes distinguir as sepulturas daqueles que amaram e
por quem choravam? Serviam-se de
pinturas, símbolos
ou
sinais.
Isto é muito claro, porque a ligação dum símbolo com o
nome ou profissão da pessoa enterrada facilmente se achava em
muitos casos. E por isso se chamam
símbolos fonéticos.
Como exemplo, seguem-se quatro epitáfios destes, tendo
cada um algum símbolo em aditamento à inscrição:
Nauis
é o latim para navio e navio é o melhor símbolo
fonético para Navira, o nome da falecida.. Outro:
Leo
é o latim para leão e um leão é usado aqui para mostrar o
túmulo de Pôncio Leão e de seu filho. Outra inscrição, com dois
barris, que diz assim:
Dolium é o latim para barril;
e assim pregaram o barril
para simbolizar o nome de Doliens.
Agora vamos ver uma inscrição com um porco e achamos
que é o túmulo de uma menina chamada Porcela, que em
latim significa leitão. Ê esta:
Alguns escritores católicos romanos têm inventado muitas
histórias supersticiosas para explicar estes símbolos, nos
quais queriam ver representações de martírio. O progresso da
ciência histórica tem, contudo, posto de parte todas essas
invenções.
Era costume em muitas nações antigas indicar a profissão
dos falecidos por meio de ferramentas e de símbolos pintados
nos túmulos. Às vezes colocavam também esses símbolos
dentro das sepulturas. Isto explica o aparecimento de tais
objetos nas Catacumbas e também os símbolos representados
nas lápides, referindo-se evidentemente às profissões ou
ofícios dos falecidos.
Aqui está uma lapide com a inscrição:
A serra, o formão e a enxó aqui gravados indicam que
Bauto tinha sido carpinteiro.
Outra, com dois malhos e uma faca, é a sepultura de
pessoa, cujo ofício não se pode determinar com precisão. Reza
assim:
A data desta sepultura, ano 402, depois de terem ces-
sado as perseguições, prova que os símbolos nenhuma relação
tinham com os martírios.
Uma lápide quebrada com a simples inscrição o LUGAR
DE ADEODATUS, continha desenhos de instrumentos de
cardador de lã.
Outra, a VENÉRIA, EM PAZ, parecia indicar que tinha o
mesmo ofício, que era muito comum em Roma, onde quase
todas as classes usavam roupas de lã.
Outra lápide, erigida à mulher de um sapateiro, tinha
duas chinelas gravadas. A inscrição, de que falta a primeira
linha diz:
Outra pedra apresenta o rascunho de uma medida de
alqueire, cheia de grão, que parece indicar que cobria a
sepultura de uma pessoa negociante de trigo e reza assim:
Bastará apenas mais uma ilustração sobre este assunto:
Uma pedra que representa um escultor trabalhando num
sarcófago; um rapaz o está ajudando; fazendo mover uma pua
empregada para bloquear pedra; os outros instrumentos do
ofício estão no chão. O outro sarcófago concluído e tendo um
nome que concorda com o nome da inscrição, informa-nos que
Eu tropos era escultor e fabricante de mausoléus. Está em
atitude de orar, com uma taça na mão. A inscrição, que é em
grego, diz:
Seria curioso procurarmos saber até que ponto este sis-
tema de inscrever, simbolicamente, nomes e profissões, levou
à adoração geral de símbolos familiares, tais como brazões,
etc, que muitas vezes lembram qualquer ação desempenhada
pela família ou alusiva ao nome, ocupação ou história da
pessoa; mas isso não faz parte do nosso programa. Esta
prática, mais tarde reduzida a sistema a que chamamos
ciência heráldica, tem sido atribuída ao costume de usar
símbolos nos escudos dos que, na Idade Média, tomavam
parte nas Cruzadas da Terra Santa.
É, porém, bem evidente que esse costume não foi originado
nessa ocasião; apenas reviveu então, porque existem traços
dele não somente nas Catacumbas de Roma, mas também nos
túmulos dos cristãos armênios até hoje. Foi adotado por
famílias abastadas no tempo de Augusto, por Mecenas, cujo
brasão era uma rã. Também tem sido notado nas sepulturas
dos reis do Egito e nos cilindros e selos da antiga Assíria.
outra classe mais interessante de símbolos, predo-
minante nas Catacumbas, isto é, a que se refere à
crença
religiosa
dos cristãos primitivos.
Ignorantes como eram, não sabendo ler nem escrever, e
perseguidos por causa da sua em Cristo, era necessário que
procurassem algum símbolo que os habilitasse a exprimir a
sua crença e que fosse ao mesmo tempo ininteligível para os
seus perseguidores. Daí nasceu o uso de dois símbolos: um
chamado "o Peixe" é outro "o Monograma", compostos de mais
de uma letra. Crê-se agora que o símbolo do Peixe entrou
primeiro em uso e que o Monograma foi adotado depois do
imperador Constantino.
O símbolo do Peixe, referente à em Cristo, teria sido
difícil de decifrar, se não fossem as inscrições com a palavra
grega
IXY
, que significa peixe e também o símbolo. A
decifração acha-se nas
letras da palavra,
bem como no próprio
objeto representado. É um anagrama sagrado. A explicação
está em que a palavra
IXY
formada das iniciais das
palavras gregas que descrevem os nomes, títulos e ofício de
Jesus, isto é,
Ίησους Χριστός Θεο ιός Σωτήρ
, Jesus Cristo, Filho
de Deus, Salvador.
Os primitivos escritores referem-se freqüentemente a Cristo
sob o termo
IXY
. O símbolo é mencionado por Clemente de
Alexandria. Optatos diz: "Esta simples palavra encerra uma
multidão de nomes sagrados". Orígenes fala de Cristo como
"chamado figurativamente Peixe". Tertuliano, Agostinho e
outros ligam este nome com o rito iniciatório cristão do
batismo. Este símbolo foi um dos mais primitivos símbolos
teológicos, sendo também um dos primeiros a cair em desuso.
No começo do quinto século havia desaparecido da arte
religiosa (4).
(4) Withrow, pp.252 a 255.
O MONOGRAMA, em sua forma primitiva, consistia
somente das duas letras gregas, X (chi) e P (ron), que são as
duas letras iniciais de
XPIO
, o nome grego de Cristo.
Estas letras eram, como vemos, iguais aos nossos X e P e
achamos o X como P desenhados no centro (5)
(6) O antigo distintivo das Associações Cristãs da Mocidade tinha este monograma ao
centro.
Aqui temos uma inscrição grosseira em que se lê:
O monograma é usado aqui em lugar de Cristo e as letras
gregas Alfa e Omega foram adicionadas para exprimir "o
primeiro e o último", títulos de Cristo, adotados por Ele
mesmo no livro do Apocalipse (6).
Eis outro exemplo do símbolo e também da ignorância da
época sobre assuntos literários. Um fragmento de pedra,
contendo parte de uma data.
(") Apocalipse 1.8,11; 21.6; 22.13.
Observamos também duas outras formas deste símbolo,
ambas encerradas num círculo, evidentemente para exprimir
a crença na sua eternidade, visto o círculo ser o símbolo da
eternidade, muito usado entre os antigos. Num caso o
monograma tem a mais alfa e ômega: noutro, as letras
ESDEIAS circundam o monograma, supondo-se que
significam
Christus est Dei
(Cristo é Deus,).
A transição do X grego para uma cruz ao alto foi prova-
velmente logo sugerida para representar simbolicamente o
instrumento da crucificação de nosso Senhor. Com o tempo,
isso acentuou-se e encontra-se nos monumentos mais
recentes, ficando a cabeça do
rou
como a parte superior da
cruz, como se vê na gravura abaixo.
Temos aqui dois exemplos: um simples e outro encerrado
num triângulo equilátero, que se supõe significar a na
doutrina da Trindade (7).
nos referimos ao fato de haver judeus em Roma na
época da introdução do Cristianismo ali, e à asserção de
Suetônio de que eles levantaram tumultos por causa da nova
fé. O último capítulo de Atos dos Apóstolos narra-nos o mesmo
fato. O apóstolo Paulo (8), ao chegar a Roma, mandou chamar
os judeus e discutiu com eles sobre o Cristianismo; porém,
achando-os em geral, adversos à fé, voltou-se para os gentios,
dizendo: "Seja-vos, pois, notório que aos gentios é enviada esta
salvação de Deus, e que eles a ouvirão". Será interessante
saber que as Catacumbas fornecem-nos evidências de que
havia judeus em Roma, que, sendo confundidos com os
cristãos, participaram das perseguições e procuraram refúgio
com eles nas Catacumbas. Porém, não obstante isso,
conservavam-se separados dos cristãos no tocante aos serviços
e cultos religiosos.
Numa das galerias da Via Portuense, que não contem
nenhuma inscrição cristã, Bosio achou uma lâmpada com o
desenho do candelabro de ouro do Templo de Jerusalém e, na
parede sobre essa lâmpada, a palavra SINAGOGA, em letras
gregas, indicando evidentemente o lugar de reunião
(7) A
arte cristã primitiva e medieval,
de Twining.
(8) Atos 28.17-28.
para o culto judaico. É claro que alguns de origem judaica se
converteram à cristã, pois achou-se um epitáfio
curiosíssimo, escrito em hebraico, grego, e latim que denota a
sepultura de uma judia cristianizada. A inscrição em letras
gregas diz: AQUI JAZ FAUSTINA. No pedestal existe uma
tentativa muito grosseira de gravar a palavra hebraica
Shalom,
que significa paz. O candelabro judaico está no
centro da pedra, tendo, de um lado uma vasilha de óleo, e do
outro uma palma. A explicação podia ser que uma certa judia,
ao converter-se, tivesse tomado o nome cristão de
Faustina
e
que os seus amigos, depois da sua morte, quisessem recordar
no túmulo a sua origem hebraica, bem como a sua fé cristã.
Em outro caso, uma mulher com um nome hebraico,
ELIASA, levanta uma lápide à memória de seu marido ro-
mano, SORlCIO, com a inscrição:
O centro da lápide apresenta o monograma de Cristo, com
as extremidades laterais voltadas para cima, para formar a
figura do candelabro, combinando engenhosamente, desta
forma, num pequeno símbolo, não maior que o anterior, a
idéia da origem judaica com a crença cristã (9).
Os símbolos fonéticos e profissionais e os que exprimiam a
em Cristo, não eram de maneira alguma as únicas figuras
simbólicas que usavam. Em tempos de ignorância, era
necessário exprimir por sinais muitas idéias que em nossos
tempos se transmitem sem dificuldade por meio da palavra
escrita ou impressa.
Assim,
paz e esperança
são representadas em pinturas
simbólicas nas sepulturas: paz, pela pomba e pelo ramo de
oliveira, e esperança e segurança, pela âncora, ao passo que a
convicção bem fundada de ter entrado no descanso era
expressa por um navio ancorado no, porto.
Aqui estão os dois exemplos: uma pomba com um ramo de
oliveira no bico e a palavra PAX (paz); outra pomba com ramo
nos pés e a inscrição:
Aqui, temos uma pomba com uma âncora desenhada no
peito e com a inscrição:
(9)A
Igreja nas Catacumbas,
de Maitland, pp.76,78 e 21.
Na página anterior observa-se uma âncora significativa
da segurança e da esperança cristã; figura bíblica, usada na
epístola aos Hebreus: "Esperança que temos como uma
âncora segura e firme da alma" (10).
O navio que acima reproduzimos refere-se, com toda a
probabilidade, à alegoria da escritura usada pelo apóstolo
Pedro ("); sendo a referência feita, como se supõe, à próspera
entrada de um navio no porto: "Porque assim vos será dada
largamente a entrada no reino eterno de nosso Senhor Jesus
Cristo".
Tem-se achado muitos outros símbolos significativos, mas
pouco mais podemos fazer do que nomeá-los. A coroa e a
palma são muito freqüentes, aludindo ao triunfo e à re-
compensa daqueles que forem "fiéis até a morte". Estes
emblemas são também da Escritura, repetidamente men-
cionados no Apocalipse. Não motivo para chegar à
conclusão de que tais símbolos distinguem especialmente as
sepulturas de mártires. Aludiam ao triunfo dos cristãos sobre
o mundo e sobre o Diabo, mais provavelmente que sobre a
fraqueza da carne na hora da perseguição.
Temos, ria página seguinte, exemplo em que o mono-
(10) Hebreus 6.19.
(11) 2Pedro 1.11.
grama de Cristo está rodeado de palmas de triunfo e encer-
rado numa coroa, o que mostra de quem era a força a que
estes primitivos cristãos atribuíam a vitória.
A inscrição reza assim:
Ao encerrar esta narração dos símbolos usados por estes
cristãos iletrados, não queremos afirmar que aprovamos o uso
de representações simbólicas de coisas divinas. Muita
idolatria tem origem do uso de símbolos desnecessários, agora
que a instrução está tão desenvolvida.
Passemos agora ao estudo das
sepulturas dos mártires.
Os
cristãos sempre tomaram grande interesse em tudo que se
refere aos que, em qualquer período da história do mundo,
preferiram sacrificar as suas vidas a renunciar a e es-
perança do Evangelho, negando o Senhor que os resgatou.
Mas um interesse especial naqueles que suportaram a
violência do conflito com os poderes das trevas, na infância do
Cristianismo. Desgraçadamente, a ignorância e a superstição
têm contribuído muito para tornar as investigações do assunto
desagradáveis a muitos e difíceis a todos. Cada arranhadura
numa lápide tem-se interpretado como prova de martírio; cada
símbolo profissional tem-se tomado como um instrumento de
tortura; cada osso descoberto, como relíquias de mártires. Tal
era o zelo e tal a ignorância dos que professavam a romana,
quando as Catacumbas foram reabertas, que grande parte dos
ossos descobertos foram levados como outras tantas relíquias
preciosas para, como diziam, santificar as igrejas em que se
iam guardar.
De cristãos, portanto, mártires ou não, poucos restos mortais
se acham agora.
Felizmente, houve mais zelo na procura de ossos do que na
de inscrições; e podemos bem deixar os ossos aos romanistas.
As pedras que ficaram com as suas inscrições permitem-nos
tirar preciosos ensinamentos, verdadeiros "sermões em
pedras". Gravadas como estão, essas inscrições são agora
imperecíveis.
razão para crer que existam poucas inscrições que se
refiram aos mártires. Na verdade, não parece ter sido costume
dos cristãos primitivos fazerem alarde dos seus sofrimentos.
As suas inscrições quase sempre apontam para uma gloriosa
imortalidade e, raras vezes, tratam dos sofrimentos presentes
ou passados.
A idéia expressa pelo apóstolo (12) parecia estar sempre com
eles: "O que aqui é para nós de uma tribulação momentânea e
ligeira, produz em nós, de um modo todo maravilhoso, no mais
alto grau, um peso eterno de glória". A palavra "Paz" está
inscrita em milhares de sepulturas, ao passo que
"Sofrimento"
em poucas. Com exceção de uns poucos fragmentos, nos quais
aparece a palavra
"Mártir"
e do caso de Alexandre
anteriormente citado, acharam-se nas Catacumbas somente
quatro
casos fidedignos de inscrições referentes a martírios.
Aqui está o
fac-simile
de duas e a cópia de duas. Falemos das
cópias primeiro. Uma apresenta a palma e o monograma do
Salvador; nela, o nome do imperador Adriano fixa a data
aproximada de 130 d.C.
(12) 2Coríntios 4.8-18.
A inscrição anterior, provavelmente foi erigida em tempo
de perseguição, "com lágrimas e temor".
Eis outra inscrição levantada pela viúva de um mártir,
contendo em poucas e tocantes palavras os sofrimentos da
carne e também a angústia suportada por aqueles corações
unidos pela mais terna afeição, sofrimento talvez mais
agudamente sentido, mas que muitas vezes olvidamos ao
considerar os mártires de todas as épocas.
Temos ainda um
fac-simile
de uma inscrição encontrada
por Boldetti, e que é a única conhecida das Catacumbas
referente à temerosa perseguição de Diocleciano. O seu valor é
aumentado pelas iniciais E.P.S. (13), que provam que a lápide
cobre a própria sepultura de Lanno e de sua família. Diz:
(13) Significam:
Et Posteris Suis,
e a sua posteridade.
A última inscrição fidedigna, que se refere a mártires, e
que aqui se reproduz, é de tal interesse, que não podemos
deixar de dar sobre ela uma notícia mais detalhada. Está
escrita em caracteres gregos arcaicos; porém, as palavras são
em latim:
Por baixo está uma palma de triunfo.
Este epitáfio, descoberto por Aringhi em 1650, causou
muita investigação erudita. A razão por que foi escrita em
caracteres gregos, ao contrário de todas as outras inscrições
das Catacumbas, e por que uma criada da Gália (antiga
França) escrevia grego, têm sido questões difíceis de resolver.
Estes pontos são explicados pelo Dr. Maitland (14):
''Cerca de trinta anos depois de Aringhi, Mabillon chamou
a atenção para uma observação feita por Júlio César O5), de
que os druidas gauleses estavam acostumados a usar
caracteres gregos nas suas transações seculares.
"Isto justifica o grego de Teófila, do qual algumas letras
mal se podem admitir como fazendo parte do alfabeto oficial.
Mais tarde, ela aprende o latim, mas de ouvido. Isto não a
habilita a escrever e a falar essas línguas. Teófila
( 14 ) A Igreja nas Catacumbas,
p.134 a 136.
(15) Caesar,
De Belo Gálico,
lib.6.
tem um recurso - expressar as palavras latinas em caracteres
gregos druídicos. Desta maneira ela consegue relembrar o
martírio de seu amo.
"Aqui encontramos uma dificuldade: traçamos, baseados
numa obscura inscrição, a história de uma autoridade
romana, pessoa de alta posição, martirizada pela fé.
Colocamos o incidente em Roma e fixamos as Catacumbas
como sua sepultura. Demos-lhe uma família, e, em particular,
uma serva cristã fiel, que erigiu um monumento à sua
memória. Mas não conterá a história romana notícia de o
notável ocorrência? Aringhi, que descobriu o epitáfio, não
conhecia nenhuma. Cerca de noventa anos antes de Aringhi
escrever, Súrio publicou um manuscrito, intitulado: 'O
martírio de S. Gordiano' . Este tratado descreve a conversão
de um nobre romano chamado Gordiano, por meio da pregação
do presbítero Januário, que sofreu o martírio no tempo de
Juliano; descreve também o batismo de Gordiano e de sua
mulher, Mariana, com uma grande parte de sua casa, ao todo
cinqüenta e três pessoas. Gordiano foi martirizado e o seu
corpo exposto na frente do templo de Minerva, de onde foi
retirado por alguém da casa, que o enterrou nas Catacumbas
na Via Latina. Coincidência mais ampla mal se pode desejar".
A afeição quase filial dessa criada cristã pelo seu amo
martirizado, lembra-nos vivamente Maria de Betânia: o seu
amor ao Salvador e o testemunho destemido da sua fé, quando
ela o ungiu na casa de Simão, o leproso (16). A notoriedade que
tem sido dada ao ato caridoso e de coragem da serva Teófila,
faz-nos recordar também as palavras do Salvador naquela
ocasião: "Onde quer que for pregado este Evangelho, que o
será em todo o mundo, publicar-se também para memória
sua a ação que esta mulher fez".
As Catacumbas contêm muitas representações de homens
e de mulheres em pé, com as suas mãos abertas; esses
desenhos os católicos romanos supunham indicar as
sepulturas de mártires. É claro, contudo, que a suposição não
tem fundamento e que a posição das figuras representa
(16) Mateus 26.6-13.
mais um sentimento do que um fato. O ato de estar em ,
com os braços abertos, indica a posição universal de oração
que havia na Igreja primitiva em Roma.
Aqui temos duas representações, dentre as muitas
preservadas: uma é a de uma mulher e a outra representa o
apóstolo Paulo. Se repararmos no sarcófago de Eutropo, ao
qual nos referimos anteriormente (página 104), e no de-
senho representativo de Daniel na cova dos leões, veremos
que as figuras são apresentadas na mesma atitude.
Esta posição de oração era a usual, tanto no paganismo
como entre os cristãos, e isso se verá recorrendo a Virgílio,
poeta pagão, ou ao escritor cristão Tertuliano. Este, na sua
Apologia, diz: "Suplicamos pelos imperadores ao verdadeiro,
vivo e eterno Deus, em cujo poder estão, e para quem são
segundos e depois de quem são primeiros,
com as mãos
estendidas,
porque, assim são inofensivas; com as cabeças
descobertas, porque se não envergonham; sem uma
insinuação, porque é do coração que pedimos vida longa e
todas as bênçãos para eles... Assim, enquanto
de
oramos
perante Deus, que os
ungulae
nos dilacerem as carnes, que as
cruzes suportem o nosso peso, que as chamas nos envolvam,
que a espada separe as nossas cabeças, ou que as feras se
lancem sobre nós.
A própria atitude de um
cristão que ora
(isto é, de com os braços abertos em cruz)
é
uma preparação para todo o castigo"
(17).
Os cristãos nas Catacumbas são geralmente represen-
tados como orando nessa posição: o costume de ajoelhar na
oração foi introduzido mais tarde e generalizou-se (18). Este
fato oferece-nos valiosa evidência corroborativa da anti-
güidade das esculturas e obras de arte achadas nas Cata-
cumbas. Se tivesse havido fraude, ficaria logo desmascarada,
por inconsistências semelhantes àquelas que tão ine-
quivocamente se declaram com relação a certas falsidades
literárias, que pretendem passar como obras da Igreja pri-
mitiva.
(17) Tertuliano,
Apologia,
cap.30.
(18) De acordo com as autoridades citadas no livro
Antigüidades da Igreja Cristã,
do Rev. Lyman
Coleman. a p.100, o costume de ajoelhar na oração pública foi introduzido como uma
penitência, que era classificada como a mais leve. para a distinguir da
prostração,
prescrita
para ofensas maiores. O direito de orar em pé era negado aos que estavam debaixo da censura
da Igreja, sendo considerado privilégio e prerrogativa somente dos crentes fiéis. Ê fácil traçar
a ligação entre a prática primitiva de fazer ajoelhar os
penitentes
e o sentimento de
humilhação tão geralmente ligado á posição de ajoelhar em tempos mais modernos. Orar de
joelhos era absolutamente proibido, tanto no dia do Senhor como no dia de Sábado. Vede a
grande variedade de autores citados naquela obra no cap.10, sec.12. notas 2 a 11.
Por apontar a prática primitiva da Igreja quanto à atitude
do corpo na oração, não se deve supor que damos muita
importância a esse assunto ou que simpatizamos com os que
acham essas coisas essenciais no Cristianismo. É lamentável
verificar quantas vezes um cristão se tem separado de outro,
apenas por causa de uma prática diferente, quanto à forma
como o culto espiritual se deve fazer. muito tempo que a
religião deixou de ser uma questão de tempo, de lugar ou de
atitude, como o era entre os pagãos. Agora é assunto do
coração,
e não dos joelhos dobrados ou não. Três mil anos têm
sido insuficientes para ensinar aos homens a verdade
promulgada, nos dias do profeta Samuel, que o Senhor não
olha para o que o homem olha, "porque o homem vê o que está
patente, mas o Senhor vê o coração" O9).
A inscrição, duma das lápides que estamos examinando (a
da página 119), diz assim:
BELICIA, FIDELISSIMA VIRGEM, VIVEU DEZOITO
ANOS. EM PAZ. NO DÉCIMO QUARTO ANTES DAS
CALENDAS DE SETEMBRO.
Belícia está representada com o vestido usado pelas
mulheres solteiras, a
stola instita
ou túnica com franjas.
No outro caso, a única inscrição é: PASTOR.PAULO.
APÓSTOLO.
Observamos aqui a simplicidade da Igreja primitiva:
nenhum prefixo de
Santo
havia sido então dado exclusiva-
mente a qualquer dos servos de Cristo. O termo era aplicado,
como no Novo Testamento, sem distinção, a todos que eram
santificados por uma fé viva e verdadeira em Cristo (*).
Também não encontramos "auréola", "nimbo", ou "glória"
cingindo a cabeça dos apóstolos, nem tampouco as cabeças de
quaisquer outros cristãos representadas nas
(19) IReis 16.7.
(20) Vede Romanos 1.7; ICoríntios 1.2; 2Coríntios 1.1: Efésios 1.1; Filipenses 1.1; Colossenses 1.2;
etc. cinqüenta e sete casos no Novo Testamento, em que os crentes, como uma classe, são
chamados "santos", mas não nenhum caso de o termo ser aplicado a um indivíduo para
distinguir dos outros crentes.
Catacumbas. Esta prática, paga em sua origem, teve início
entre os cristãos do século V (21).
Os títulos simples e bíblicos de "pastor" e "apóstolo", com
uma cruz indicando união com Cristo, eram considerados
distinção suficiente para o grande apóstolo das gentes, numa
cidade em que alguns dos chamados seus sucessores
apostólicos têm permitido tributar-se títulos e prerrogativas
que só pertencem a Deus.
É interessante notar que, entre outras práticas da Igreja
primitiva, as Catacumbas nos oferecem ilustrações do
Ágape
ou festa de amor. O Novo Testamento refere-se a esta festa, 2
Pedro 2.13 e Judas 12. Consistia numa refeição em comum,
geralmente ligada à celebração da Ceia do Senhor, imitando o
exemplo de Jesus e seus discípulos, que participaram da Ceia
Pascoal, imediatamente antes da instituição da comunhão (22).
A festa de amor ou
ágape,
usualmente formava parte do
festim por ocasião de batismo ou casamento, e também era
observada em enterros. No decurso dos tempos cometeram-se
excessos, que degeneraram em abusos, até que a festa foi
banida de várias igrejas e finalmente abolida na Europa (23).
Nas eras primitivas da Igreja estas festas promoviam, sem
dúvida, relações de amizade cristã e amor fraternal.
Tertuliano na sua Apologia (24), dá-nos uma descrição muito
elogiosa delas. Descreve-nos a refeição como frugal e modesta;
a conversação era conduzida sob a convicção de que Deus
estava presente; fazia-se oração, e eram
lidas e
(21) 0 caso mais primitivo e saliente dos
nimbos,
isto é. um círculo rodeando a cabeça.
usado pelos
cristãos,
acha-se numa igreja em Ravena. construída no século V. O nimbo está afixado a uma
imagem de Cristo. Vede
A Arte Cristã Antiga e Medieval,
de Twining, estampa 15, grav.9 e
estampas 93. grav.l. Ilustrações de nimbos.
usados entre os pagãos,
podem ser vistas em
Pompéia. onde estão colocados sobre a cabeça de Circe e outros. - Vede
Biblioteca para a
Conservação das Descobertas da Pompéia,
vol.2, p.9293. Ver a interessante nota sobre a
origem deste costume.
(22) Ignatio,
Epist. ad Smyrn., cap.8.
(23) É interessante notar que o Dr. Asahel Grant achou que existia este costume entre os cristãos
nestorianos ou caldeus da Ásia Central e parece não ter sido interrompido desde os tempos
apostólicos. Vede
Nestorianos,
do Dr. Grant. p.57.
( 24 ) Apologia,
p.93.
explicadas as Escrituras,
e cantados hinos; a cerimônia incluía
também o ósculo da paz e uma coleta para os pobres. Ê
provável que o costume de velar cadáveres, como ainda hoje é
usado em alguns lugares, tenha tido origem nesta festa.
Algumas igrejas cristãs, particularmente as metodistas,
reviveram nestes últimos tempos o costume de celebrar
ágapes
ou festas de caridade; e como a água é o copo que
anima mas não embriaga, tem substituído o vinho. Assim, os
excessos são evitados e a prática não fica exposta aos perigos a
que antes estava sujeita.
Descobriu-se numa capela subterrânea do cemitério de
Marcelino e Pedro uma interessante pintura dumas dessas
festas. É a gravura desta página, na qual três hóspedes estão
sentados à mesa; o criado serve a comida colocada sobre a
mesa, ao centro. Duas senhoras parecem presidir,
personificando, como se infere da inscrição, "Paz" e "Amor".
-se na mesa um cordeiro, pão, e um copo, e no
120
chão o jarro de vinho. duas inscrições latinas abreviadas
sobre as cabeças das que presidem, que dizem: PAZ, DAI
ÁGUA QUENTE. AMOR, MISTURAI PARA MIM, referindo-
se ao costume quase universal naqueles tempos de se beber
vinho misturado com água (25).
Agora, tendo explicado o que é difícil e apontado o que é
mais interessante com relação às inscrições nas Catacumbas,
dizemos em conclusão:
É admirável a sábia providência de
Deus,
revelada neste assunto. Um esconderijo para a Verdade,
um berço para a Igreja perseguida, havia sido provido durante
os tempos da perseguição. Ali o Cristianismo na sua infância
achou abrigo. Ali foram arquivados "sermões em pedras",
preservados até que a crescente corrupção da religião exigisse
o seu testemunho para provar a pureza da Igreja primitiva.
A descoberta das Catacumbas - depois de se terem perdido
de vista por cerca de mil anos - teve lugar no ano de 1578,
quando alguns trabalhadores que estavam tirando
pozzolana
numa vinha da Via Salariana, encontraram inesperadamente
o antigo cemitério ou Catacumba chamada Santa Priscila.
Este acontecimento produziu profunda sensação em Roma, e
principiaram as explorações e as investigações que tem
continuado até o dia de hoje.
Sobre este ponto é muito apropriado citar Withrow (26):
"Parece que a descoberta das Catacumbas foi reservada
providencialmente para um período especial, adaptado a um
estudo proveitoso. No cumprimento do tempo, quando a
Reforma emancipava o espírito humano das peias da su-
perstição, e muitas crenças e costumes arraigados eram
provados pela e pela prática primitivas, aparecia este
testemunho maravilhoso, para mostrar a pureza, a simpli-
cidade e a piedade da Igreja primitiva.
"Estes testemunhos que não têm paralelo senão nas
próprias Escrituras Sagradas, tendo permanecido escondidos
durante os obscuros culos de ignorância e de superstição,
são trazidos à luz num período de atividade intelectual
(25) Vede
A Igreja nas Catacumbas, p.268.
(26)
As Catacumbas de Roma.
de Withrow.
e de reavivamento dos conhecimentos clássicos, que
estimularam os homens ao estudo do passado e ao aprovei-
tamento das preciosas riquezas da antigüidade. A imprensa,
que acabava de ser inventada, e o buril do gravador salvaram
para a história muito do que desde então tem desaparecido.
Alguns arqueólogos católico-romanos, querendo procurar nos
monumentos da antigüidade a justificação de várias doutrinas
e práticas papais, foram os próprios que trouxeram à luz a
refutação de sua existência nos primitivos séculos da Igreja.
Isto será o assunto do capítulo seguinte.
6
Romanismo:
"Cristianismo" adulterado
"Vi uma mulher assentada sobre uma alimária cor de
escarlata... que tinha sete cabeças e dez chifres... As sete
cabeças são sete montes, sobre os quais a mulher está
assentada... E a mulher que viste é a Grande Cidade, que
reina sobre os reis da terra", Apocalipse 17.3,9,18.
Ao concluir o capítulo antecedente, notamos o fato de, na
providência divina, a Reforma ter restituído ao mundo as
Escrituras Sagradas em letra de imprensa e na língua de cada
povo, no momento em que as Catacumbas de Roma apareciam
como um livro muito escondido, porém vastamente
ilustrado com evidências quanto à condição da primitiva
Igreja Cristã.
Temos agora duas imperecíveis testemunhas para
podermos responder à pergunta: Se o Cristianismo é um
remédio divino, por que é que não tem efetivado com mais
plenitude a sua missão de libertar o mundo de males que
ainda o afligem?
A resposta a esta objeção é: o que se vem muito
apresentando como Cristianismo é um ensino corrompido. É
um "Cristianismo" (entre aspas), que ainda permanece, mas
nos últimos tempos o Cristianismo (sem aspas) em toda a sua
pujança tem ressuscitado e a sua luz brilha nas trevas
deste mundo.
Usando de uma figura familiar, diremos: o Grande Médico
deixou uma receita própria para remediar os males de um
mundo de pecados e de sofrimentos. Essa receita provou a sua
eficácia maravilhosa quando foi pela primeira vez ad-
ministrada, mas falsificaram-na depois: omitiram um in-
grediente aqui, juntaram outro ali, até que pouco se as-
semelhava à original. Não admira, portanto, que ela tenha
cessado de curar!
Pergunta-se ainda: Como se prova isso? Respondamos:
mostrando o valor da receita na sua pureza primitiva, que era
o Cristianismo na sua origem. Disso as pedras das
Catacumbas dão testemunho. "As tortuosas Catacumbas", diz
Withrow, "são as paredes indiscretas dos tempos passados".
Fornecem-nos um contraste com o paganismo; servem para
testificar a existência de um Cristianismo primitivo, puro e
eficaz. Assim como chamamos um ancião para provar, num
tribunal, uma prática sancionada pelo costume, assim também
intimamos estas silenciosas testemunhas, que virão dos seus
esconderijos de quinze a dezoito séculos, e nos falarão da
religião de Cristo, pura, imaculada.
Não vamos tratar de
homens
individualmente, mas de um
sistema.
Afirmo que um "Cristianismo" espúrio usurpou o
lugar da genuína. É verdade que tem havido sempre, desde
a introdução do Cristianismo, pessoas que o professaram
sincera e verdadeiramente. Estes foram em todos os tempos as
testemunhas de Deus, pois Ele nunca se deixou sem
testemunho sobre a Terra. Eles formaram no mundo a Igreja
dos santos, cujos nomes, estão escritos no Céu 0). É certo,
porém, que uma apostasia geral e muito espalhada tem
prevalecido no meio da "cristandade", uma
(1) Hebreus 12.23.
apostasia que, por muitos séculos, conseguiu substituir o
Cristianismo por um "Cristianismo" espúrio e falsificado,
como estava claramente predito na passagem colocada no alto
deste capítulo e em muitas outras da Escritura.
Agora, perguntamos: Como procederíamos para nos
certificar da autenticidade de uma moeda duvidosa que
porventura nos tivesse chegado às mãos? Certamente a su-
jeitaríamos a todas as experiências possíveis. Fazendo-a tinir,
verificaríamos se tinha o som que a natureza deu à prata ou
ao ouro, conforme o caso. Depois de vários outros testes, se
ainda duvidássemos, a levaríamos a um químico para que,a
analisasse, a fim de se nos dissiparem todas as dúvidas.
E não deveremos proceder igualmente - ainda com mais
cuidado - para apurar, depois de exame minucioso, o que seja
o Cristianismo, de maneira a não sermos enganados por
qualquer forma de falsificação?
Ora nós temos agora à mão os meios de submeter à provas
aquilo que afirmamos ser "Cristianismo" corrompido. Podemos
examiná-lo à luz da
história
e indagar qual tem sido a prática
dos seus seguidores; quais os seus efeitos sobre o conforto, a
felicidade e a moral do gênero humano. A história conta-nos
casos de opressão, crueldade, perseguição, avareza e ambição
cometidos em nome de Cristo e da sua religião; de conversões
obtidas à ponta da baioneta; de confissões estorquidas pela
tortura; de morticínio e destruição efetuados tanto contra
incrédulos como contra cristãos, tudo em nome daquele que
não veio destruir vidas, mas salvá-las.
A história acusa a instituição a que nos referimos de
praticar estes e outros crimes ainda bem mais graves; de ter
provocado e fomentado guerras e derramamento de sangue; de
ter deposto reis e absolvido os súditos que lhes não prestaram
obediência; de ter promovido a traição e a rebelião, e
fomentado revoluções para aumentar o seu poder; de ter
sempre perseguido, toda vez que se achava senhora do mando,
o que fazia segura do resultado e da impunidade; de ter
inventado mais torturas e exercido requintes
de crueldade tal, que jamais se ouviu de qualquer sistema,
sem excetuar mesmo o paganismo.
A Igreja Romana é acusada de usar da mentira, da
violência, da prepotência, para castigar, matar, destruir
aqueles que julgava seus inimigos ou que de seus erros di-
vergiam. Seus mais altos dignatários, para alcançar seus fins
inconfessáveis, praticavam os crimes mais infames, dando
lugar a obras de grandes escritores que os condenaram
publicamente. Aí' está a história da Inquisição onde milhares
de santos foram martirizados pela Igreja Romana.
É, assim, acusada e reconhecida perante todos como a
grande inimiga da liberdade e do progresso humanos. Em
qualquer parte onde dominou, negou a liberdade da palavra e
proibiu o livre exame. Basta citar os casos de Copérnico e de
Galileu, condenados simplesmente por prosseguirem nas suas
investigações científicas. Tem posto embaraços à democracia,
querendo impedir que todos tomem parte no governo. Sempre
se opôs à liberdade de imprensa. Tem escarnecido da liberdade
de consciência, e proíbe os mais estupendos e brilhantes
trabalhos do gênio humano que são submetidos a seu exame.
Por séculos e séculos proibiu ao povo a leitura da Palavra
de Deus, desejando que o mundo permanecesse nas trevas do
pecado, como uma conspiração gigantesca contra a felicidade,
a pureza e a liberdade do gênero humano (2).
Apresentando-se como sendo de Deus, essa igreja deve ser
julgada pela
Palavra de Deus.
Podemos examiná-la, portanto,
à luz das Escrituras, podemos pesá-la na balança do
Santuário. Temos a balança em nossas próprias mãos; pesada,
como tem sido muitas e muitas vezes, acha-se em falta
flagrante. Pelo simples ato de proibir o uso franco das
Escrituras aos seus seguidores, a Igreja Romana admite que o
seu sistema não pode suportar o confronto com a Bíblia.
(2) Encontra-se um resumo bem conciso deste assunto num folheto publicado pela Sociedade de
Tratados Religiosos, intitulado:
Testemunho da História contra a Igreja de Roma.
Veja-se
igualmente o folheto do ilustre economista Emílio de Laveleye. traduzido em português:
O
Futuro dos Povos Católicos.
Não é nossa intenção empreender uma análise valendo-
nos da
história
ou da
Bíblia -
o espaço não nos permite. Isso já
tem sido feito com muita proficiência, por outros. Deixando,
pois, isso de lado, vamos apresentar as provas oferecidas
pelas inscrições, esculturas e pinturas dos cristãos primitivos
que condenam o sistema em exame.
Não chamamos a ele de religião, porque religião, do Latim,
do tema de "religare",
ligar outra vez,
ou "religar o homem
com Deus", não se lhe aplica. Muito menos podemos classificá-
lo como
igreja,
sem lhe acrescentarmos um adjetivo (embora
ele arrogue a si esse termo), porque
igreja
temos como "o
Corpo de Cristo, a reunião dos santos, lavados e purificados
pelo sangue do Senhor Jesus". A nosso ver, a melhor
designação que se lhe aplica é
sistema
com a conotação de
"combinação de partes de modo que concorram para um certo
resultado".
A cabeça, a alma desse sistema é a Roma Papal.
Daqui por diante, falando de Papismo, Roma, Romanismo
ou Catolicismo (3) Romano, reafirmamos falar de
um sistema
e não de
individualidade.
Pode haver muitos, e sem dúvida os
há, que exteriormente se acham identificados com o Sistema,
mas que não o estão de coração; também pode haver, e sem
dúvida há, os que não professam ter estas idéias, e no
entanto, de coração, estão com o Sistema.
Condenamos o Sistema porque o consideramos contrário a
Cristo e ao seu Evangelho e o maior obstáculo ao triunfo da
religião cristã na Terra, mas não acalentamos nenhuma
animosidade contra qualquer pessoa que a ele pertence.
Lamentamos e amamos as vítimas do Sistema, mas a ele o
condenamos. Não mostramos vontade contra o escravo
quando condenamos a escravatura. Assim também não
estamos contra os iludidos pela falsidade do Romanismo. A
eles falamos com afeição cristã, embora usando palavras que
a verdade nos obriga a proferir.
(3) A palavra
católico
quer dizer
universal,
ao passo que Roma. e o que lhe pertence é local. -
Católico Romano, portanto, é uma contradição de termos, equivalente a "universal local" - um
absurdo. Não pode haver senão uma
Igreja Católica
ou
Universal;
isto é, sem pertencer em
especial a qualquer nação, reino, povo ou língua: é a "igreja dos primogênitos que estão
inscritos nos céus" (Hb 12.23): os que a compõem são
com certeza os únicos reconhecidos no Céu.
É patente que, com apenas as evidências fornecidas pelas
inscrições, não poderemos apontar
todos
os erros do sistema
romano. Não se pode esperar extrair de pedras sepulcrais um
corpo completo de teologia. Mas é notável - pode mesmo dizer-
se providencial - que neste caso se possa obter tanto de tal
fonte. A corrupção do "Cristianismo" foi produzida por várias
causas, e mal precisamos acrescentar que uma delas tem sido
a inerente
corrupção do coração humano.
Mas como o
Cristianismo estava especialmente destinado a enfrentar este
mal e a vencê-lo, devemos achar outra causa que atuou sobre o
"Cristianismo" e lhe enfraqueceu a ação.
O Cristianismo sofreu devido aos esforços perseverantes e
incessantes dos que procuravam
misturar com ele o judaísmo
cessante.
Incapazes de compreender o caráter espiritual da
religião de Cristo, muitos se esforçaram por adaptá-la à lei
cerimonial, que lhe tinha servido de introdutor ou pedagogo,
como diz o apóstolo Paulo. Este mal todos podem estudar por si
nos Atos dos Apóstolos e principalmente na Epístola aos
Gaiatas.
O Cristianismo sofreu também bastante com a especulação
e sutileza da filosofia grega e da romana. As Escrituras
preveniram a Igreja Primitiva, bem como os cristãos de todos os
tempos, contra essas fontes de corrupção. De vez em quando,
achamos o apóstolo Paulo exprimindo o seu temor, a sua
solicitude, sobre esses pontos. "Temo", diz ele, "que assim como
a serpente enganou a Eva com a sua astúcia, assim sejam
corrompidos
os vossos sentidos, e se apartem da sinceridade
que há em Cristo", 2 Coríntios 11.3. Outra vez: "Tende cuidado
para que ninguém vos engane com filosofias e vãs sutilezas
segundo a tradição dos homens, segundo os rudimentos do
mundo e não segundo Cristo", Colossenses 2.8.
Não obstantes os avisos repetidos, a igreja foi-se desviando
pouco a pouco da simplicidade do ensino de Cristo, devido a
essas influências, mas essa corrupção nada foi,
comparada com a que proveio deste outro mal -
a tentativa de
harmonizar o Cristianismo com o paganismo.
É muito natural
que tal tentativa não fosse realizada enquanto
as duas religiões estavam em conflito; porém, quando
Constantino abraçou o Cristianismo e ambas eram toleradas,
aquilo que antes era considerado impossível tornou-se
praticável. Apareceram pessoas que, por motivos, talvez bem
intencionados, mas errados, acharam essa fusão proveitosa.
Agostinho escreve: "Quando se firmou a paz, os gentios
(pagãos) estavam ansiosos por abraçar o Cristianismo, mas
foram impedidos porque estavam acostumados a passar as
festas em embriaguez e orgia diante dos seus ídolos, e não
podiam facilmente abandonar esses antigos prazeres. Pareceu
bom, entretanto, aos nossos chefes favorecer esta parte da
fraqueza dos gentios, e substituir estas festas que tinham de
abandonar, por outras em honra dos santos mártires, que
pudessem ser celebradas com alegria semelhante, embora sem
a mesma impiedade" (4).
Uma passagem da Enciclopédia de Fosbroke informa-nos
do mesmo fato com mais detalhes: "Os gentios deleitavam-se
nas festas dos seus deuses e não queriam renunciar a elas. Por
isso Gregório (Taumaturgo), que faleceu no ano de 265, e que
era Bispo de Neocesaréia, instituiu festas anuais para facilitar
a sua conversão. Foi assim que as festividades cristãs
substituíram as Bacanais e as Saturnais; os jogos de Maio
substituíram as Florais (jogos em honra de Flora) e as festas
da Virgem Maria, de S. João Batista e de diversos apóstolos,
tomaram o lugar das solenidades que celebravam a entrada do
sol nos signos do Zodíaco, de acordo com o velho calendário
Juliano" (5).
Sobre a verdade destas asserções não pode haver a menor
dúvida, pois ainda hoje é evidente a coincidência dalgumas
festas cristãs com as festas do paganismo (6).
Passamos agora a provar a corrupção do Cristianismo por
meio das evidências fornecidas pelas Catacumbas. Antes
(4) Agostinho, Epístola 29.
( 5) Enciclopédia de Antigüidades,
de Fosbroke. vol.2. pp.571-591.
(6) Por exemplo: As cerimônias realizadas em Cumberland. na Escócia e na Irlanda, na
véspera de S. João, que consistem em oferecer bolos ao sol. e algumas vezes em passar
crianças pela fumaça de fogueiras: o uso do símbolo druída do azevinho e agárico pelo Natal, e
de amêndoas na Sexta-feira da Paixão e nos países católicos o carnaval, que é a Saturnália
dos romanos, realizado pela quaresma.
de prosseguir na nossa demonstração, queremos dizer que o
nosso fim principal será provar à sociedade que a Igreja de
Roma não se assemelha agora à Igreja Cristã primitiva. Ao
mesmo tempo, embora incidentalmente, demonstraremos que
a corrupção, geralmente, consistia na introdução de práticas e
idéias pagas nas igrejas cristãs. A prova terá de ser muitas
vezes de caráter negativo. Não se achando nenhuma prova de
determinada prática, poder-se razoavelmente deduzir que
essa prática não existiu, visto que, a ter existido, devia
naturalmente ter deixado traços de sua existência.
Primeiro, examinemos o Ministério. Desde os tempos mais
primitivos do Cristianismo, várias ordens de homens foram
separados para ministrar a Palavra de Deus e dirigir a oração,
e para guiar, instruir e fortificar as Igrejas. Estes ministros
das Igrejas eram de várias ordens e conhecidos por diferentes
nomes. Com respeito à posição, nome e ofício desses ministros
nos tempos primitivos, diversidade de opiniões entre os
cristãos, e daí, infelizmente, provêm muitas divisões externas
entre as igrejas. Não entro nesse campo de discussão, nem
levanto questões. Os ministros usuais da Igreja primitiva são
denominados: Presbíteros ou Bispos, que eram os
administradores ou superintendentes. Dentre esses eram os
Pastores, que se dedicavam inteiramente ao trabalho da
igreja; auxiliados pelos demais presbíteros; e os Diáconos,
para os serviços seculares das igrejas e para a direção das
obras sociais. Além desses, havia os Apóstolos, os
Evangelistas, e alguns Profetas.
O que desejamos seja notado é que, entre todos os termos
aplicados aos ministros cristãos, não referência alguma a
qualquer
sacerdócio.
Afigura-se-nos que a corrupção que mais
influência tem exercido no "cristianismo" proveio da
introdução gradual da idéia de um
sacerdote mediador para
oferecer sacrifícios,
semelhante aos sacerdotes do judaísmo ou
do sistema pagão. É claro que tal instituição não pode ser
encontrada em qualquer ensino de Jesus ou de seus apóstolos.
No Novo Testamento nunca se fala de um sacerdócio especial
na Igreja Cristã, senão num sentido que inclui cada crente
verdadeiro unido a Cristo, o
grande "Sumo Sacerdote da nossa confissão" (7). Notemos que
este não é um ponto sem importância, como poderia parecer à
primeira vista; porque, se admitirmos que um
sacerdócio
(no sentido pagão ou judaico), então temos uma série de
conseqüências - como de fato aconteceu, e foi a corrução da
"simplicidade que há em Cristo".
Desde que admitido um
sacerdócio,
um
altar
deve segui-lo,
para usurpar o lugar de uma simples mesa na ceia
comemorativa que Cristo instituiu. O
sacrifício
acompanha o
altar.
Isso aconteceu na Igreja de Roma. E mediadores
sacerdotais
se levantam entre o crente e seu Sumo Sacerdote,
que ensinara a todos a chegarem-se ao Pai tão-somente por
meio dele mesmo. Desta maneira, Cristo foi despojado do seu
sacerdócio, na Igreja de Roma, e desprezado foi o seu ofício de
sacerdote e mediador. Ali, o sacrifício perfeito "oferecido duma
vez para sempre" é continuamente
reoferecido,
como se alega
nessa igreja. Outro grande mal é que ao povo cristão ensina-se
a confessar os pecados a semelhantes seus, pecadores também,
e a depender destes, para obter o perdão; quando é certo que
todos possuímos o inestimável privilégio de acesso pessoal a
Cristo.
Ao fazermos estas considerações sobre o que julgamos ser a
corrução fundamental da Igreja de Roma, não é nossa
intenção fazer reflexões sobre o sentido que à palavra
sacerdote
dão alguns ministros, mesmo de certas Igrejas
Cristãs Reformadas; o certo é que a
idéia é de sacerdócio
mesmo.
Infelizmente, para a elucidação deste ponto, a pobreza da
nossa língua não nos fornece termo que corresponda ao ofício
sacerdotal dos judeus ou dos pagãos (8). No inglês a palavra
priest,
que afinal é a contração do grego
presbuteros,
e é a
única palavra inglesa para exprimir idéias completamente
diferentes. Sobre este ponto, em vez de exprimir
(7) Vede todas as passagens do Novo Testamento, em que as palavras "Sacerdote" ou
"Sacerdócio" são usadas com referência ao Cristianismo, por exemplo: lPe 2.5.9: Ap 1.6; 5.10;
20.6.
(8)
Iepeús
no grego é
Sacerdos
no latim.
o que pensamos, preferimos citar as de quem honrou o cargo a
que me refiro:
"Embora Roma já muito desonre a Cristo na sua qualidade
de Profeta, ainda mais profundamente o desonra como
Sacerdote do seu povo.
Retirai o ofício sacerdotal de Cristo, e o
Evangelho não é mais Evangelho. Portanto, de nada devemos
ser mais zelosos que do único e soberano sacerdócio de Jesus.
Este sacerdócio mutila-o Roma miseravelmente. Ela o faz em
primeiro lugar, perpetuando uma pretensa hierarquia de
sacerdotes para cooperar com Cristo to nas suas funções
sacerdotais - ordem esta, a seu ver, tão essencial à salvação
como o próprio Sumo Sacerdote da nossa fé. Lavro o meu
protesto mais solene e decidido contra a idéia de que, sob o
Evangelho, haja na Terra alguém que apropriadamente se
possa chamar
sacerdote.
"O sacerdócio humano pertenceu a uma dispensação
material e simbólica, que passou. Pertencia à letra. Não
pertence ao espírito. Não mais sacerdotes, no sentido
próprio da palavra, pois cessaram quando veio o verdadeiro
Sacerdote. Seria uma felicidade, se a palavra
sacerdote
nunca
tivesse sido usada pela Igreja Cristã, porque está sujeita a
interpretações erradas, ainda que todo o estudioso honesto
bem sabe que, na Igreja Evangélica, a palavra nunca é
empregada na sua antiga significação. Para qualquer espírito
livre de preconceitos, é bem evidente que nenhuma igreja
Cristã usa a palavra com esse sentido antigo; se a usa é no
sentido de
ministro,
onde os dois termos se eqüivalem. Em vão
a dialética e a sofistica dalguns, que, embora se digam
evangélicos, têm o coração para o lado de Roma, se têm
esforçado por torcer o uso da palavra
sacerdote
num sentido
que indique que o nosso ramo da Primitiva Igreja de Cristo
retém qualquer coisa que se parece com a desgraçada
invenção de Roma - a de um sacerdócio sacrificador ainda em
existência. Roma transformou o simples evangelista, o arauto
da graça, o apóstolo ou mensageiro, o pastor ou apascentador,
o pescador de almas, o mordomo cujo dever é dar a todos a
comida em tempo devido, numa ostentosa jerarquia sacerdotal
sacrificadora. Se nos perguntarem donde se originou esta
monstruosa estrutura
de heresia papal, responderemos que foi da ambição
sacerdotal!" (9).
O arcediago Farrar faz as seguintes notáveis considera-
ções sobre o sacerdócio de Cristo e contra as chamadas pre-
tensões sacerdotais dos sacerdotes, tanto da Igreja de Roma
como duma seção da sua própria Igreja, a Igreja Anglicana:
"O VERDADEIRO SARCEDÓCIO - Melquisedeque era
um verdadeiro sacerdote e por isso um tipo de Cristo. Os
sacerdotes de Aarão eram homens de linhagem especial;
homens que ofereciam o sangue de touros e de bodes;
ministros de um ritual suntuoso mas transitório - espécie de
sacerdócio que a maioria dos sacerdotes admiram. Pertencer a
uma classe consagrada; usar vestuário distintivo; atribuir-se
funções sobrenaturais; assumir privilégios exclusivos; dar às
exigências do cerimonial a maior importância, como se tudo
dependesse, num mundo de pecado e de tristeza como este, do
feitio de um vestuário ou da debatida interpretação duma
rubrica trivial - eis o que tem sido, muitas vezes, o único fim
em vista. Alcançar as rédeas do poder; lavar, com ostentação,
os pés dos mendigos, para, na realidade, pôr os seus no
pescoço dos governantes; usar coroas tríplices sob a forma de
mitras cheias de jóias, - eis ao que tende o pretenso
sacerdotalismo do papado.
"Deveis - disse uma vez o confessor da rainha de Espanha
a um fidalgo que o tinha ofendido - deveis respeitar a um
homem que todos os dias tem a vossa rainha a seus pés e o
vosso Deus em suas mãos!
"Este padre falou por todos. Assim muitas vezes os padres
têm feito do exagero do seu ofício uma desculpa para a
extravagância da sua ambição.
"Foi esta a origem da arrogância dos papas, das ambições
dos jesuítas e das abominações dos inquisidores. Porém,
sacerdotes que professam ser os "servos dos servos" para
poderem chegar a reis dos reis; sacerdotes que devoram as
casas das viúvas com as capas de longas orações; sacerdotes
que se insinuam nas famílias para levarem,
(9) Conferência do Rev. Cónego Stowell:
O papismo e como este sistema desonra a Cristo.
cativarem, os tímidos e os fracos; sacerdotes para quem a
posição e o poder, as cerimônias e as funções, os privilégios e
as sucessões são mais do que a verdade e a misericórdia, a
justiça e a razão, são sacerdotes que têm feito do próprio nome
- SACERDOTE - um objeto de ódio no mundo.
"Quão diferente o sacerdócio daquele de quem era tipo
Melquisedeque, que fez de
todos
os seus filhos uma geração
escolhida, um sacerdócio real; que fez a
todos,
tanto reis como
sacerdotes, remidos de Deus para sempre! A sua glória era a
vida simples de santidade e amor. Não usou trajos pomposos;
não veio de nenhuma linhagem sacerdotal; era o carpinteiro
de Nazaré, o Profeta da Galiléia, o Bom Médico de Genezaré.
Não era nenhum liturgista da casa de Levi, nem aristocrata
saduceu da linhagem de Aarão. Usava o trajo comum do seu
país; andava entre os pobres. O povo era atraído pelo
sacerdócio de uma humanidade pura, nobre e compassiva.
Fugiam de Caifás e das suas vestes douradas, e procuravam
Jesus na sua túnica de camponês... Na abolição do
sacerdotalismo, o gênero humano reconheceu o Salvador do
mundo.
"A verdadeira sucessão apostólica é a bendita continuidade
de bondade cristã. 0 verdadeiro pregador não é o que
meramente instrui o povo, mas aquele cuja vida é como um
farol de sinceridade. A verdadeira ordenação não é a
imposição das mãos por um bispo, mas a vocação de Deus a
seus filhos, para que não vivam para si mesmos... A sua
ordenação é a fidelidade a Deus a sua sobrepeliz, uma vida de
honestidade; as suas igrejas são as ruas e casas onde vivem
suas ovelhas; o seu púlpito é o exemplo duma vida de
harmonia com o Evangelho; a sua consciência é o seu
urim e
tumim;
a sua voz é a música do mundo"(10).
Sobre este ponto tão importante, que dizem as inscrições
nas Catacumbas de Roma?
Nelas nunca se encontrou termo
algum que corresponda ao ofício sacerdotal dos pagãos ou dos
judeus
E digno de nota que a palavra
wít
, isto é, a pessoa que
oferece sacrifício, em nenhum lugar nas Catacumbas ou
(10) Sermão pelo Arcediago Dr. Farrar sobre Hebreus 7.17.
dos escritos primitivos é aplicada a qualquer posição ecle-
siástica. Coube ao Romanismo ou ao sacerdotalismo
romanizante, fazer a aplicação ao ministro cristão desta
palavra tão oposta ao espírito do Novo Testamento" (11) Os
nomes usados para designar ministros cristãos são os que
mencionamos e os mesmos usados nas Escrituras: Bispos,
presbíteros, pastores, diáconos, etc. Também nas inscrições
constam nomes como
lectors,
isto é, ledores das Escrituras,
fossors,
isto é, serventes, com funções na igreja, mas nunca
sacerdote.
Decida cada um como quiser, para a forma de governo da
Igreja, o que lhe pareça estar mais perto do tipo primitivo.
Que cada um de nós, da maneira mais aproximada possível,
tenha idéias corretas dos cargos e funções das diversas ordens
do Ministério cristão, e encaremos todos os ministros fiéis de
Cristo como desempenhando um cargo digno e honroso,
amando-os por amor da sua obra, mas, de maneira alguma,
lhes atribuamos a honra que pertence a Cristo - Sacerdote!
Olhemos para Cristo continuamente como o nosso Sumo
Pontífice ou Sacerdote - verdadeiro Homem para simpatizar
com as nossas enfermidades e verdadeiro Deus, poderoso e
pronto a perdoar os nossos pecados. Prezemos os seus
ministros pelo ensino e exemplo que nos dêem, mas
confiemos
só em Cristo para a salvação das nossas almas!
Assim como a Igreja de Roma alterou o
caráter
dos mi-
nistros cristãos, do mesmo modo modificou o seu
estado,
proibindo-lhes o casamento, apostasia esta predita (12). Do
celibato forçado fez-se uma virtude! Nada disto havia sido
introduzido nos tempos apostólicos. O Novo Testamento diz
que os apóstolos e os evangelistas eram casados (13). Ao mesmo
tempo que Paulo expressamente declara a sua liberdade neste
assunto (14), afirma que um ministro cristão deve ser esposo de
uma só mulher (15).
As Catacumbas declaram inequivocamente que a prá-
( 11 ) As Catacumbas,
de Withrow, p.511.
(12) lTimóteo 4.3.
(13) ICoríntios 9.5; Mateus 8.14: lPedro 5.13; e Atos 21.
(14) ICoríntios 9.5.
(15) lTimóteo 3.2,11,12; Tito 1.6.
tica da Igreja Romana é uma inovação e provam que todas as
classes de clérigos nos tempos primitivos costumavam casar-
se. O Dr. Maitland fornece-nos exemplos de inscrições que se
aplicam a cada classe (16). Vejamos algumas escolhidas entre
muitas, que provam este ponto. Primeiramente, o epitáfio de
um Bispo e outro do filho de um Bispo, este do ano 404:
MINHA ESPOSA LAURÊNCIA FEZ-ME ESTE
TÚMULO; ESTAVA SEMPRE DE ACORDO COM A MINHA
DISPOSIÇÃO.
ERA VENERAVEL E FIEL: FINALMENTE A INVEJA
JAZ ESMAGADA. O BISPO LEÃO ULTRAPASSOU O SEU
80º ANO.
VICTOR, EM PAZ, FILHO DO BISPO VICTOR, DA CIDADE
DE UCRÊNIO.
LUGAR DE BASILIO O PRESBÍTERO E SUA ESPOSA
FELICITAS. FIZERAM-NO PARA SI MESMOS.
GAUDÊNCIO O PRESBÍTERO; PARA SI E PARA SUA
ESPOSA SEVERA, MULHER PURA E SANTÍSSIMA.
OUTRORA A FILHA FELIZ DO PRESBÍTERO GABINO.
AQUI JAZ SUZANA, JUNTAMENTE COM SEU PAI, EM
PAZ.
Examinemos ainda os epitáfios de um
Lector
e de um
Fossor
e de suas mulheres:
CLÁUDIO ATICIANO, LECTOR; E CLÁUDIA FELI-
CÍSSIMA, SUA ESPOSA.
TERÊNCIO, FOSSOR. PARA PRIMITIVA, SUA ESPOSA,
E PARA SI.
(16)
Igreja nas Catacumbas,
pp.247 a 251.
■M136
Mal será necessário observar, depois do que foi dito a
respeito do sacerdotalismo, que não pode haver mais
sacrifício
pelo pecado na Igreja Cristã. No tempo em que as
Catacumbas eram habitadas, o
sacrifício da missa
ainda não
tinha sido inventado; nem em tal se pensou até o século nono,
isto é, cerca de quatrocentos anos depois de fechadas as
Catacumbas. Os leitores estão por certo preparados para
saber que nenhum vestígio de sacrifício semelhante se pode
achar nas Catacumbas, nem mesmo qualquer
altar
com esse
fim (17).
Um poeta cristão, Prudêncio, que escreveu no século
IV,
fala da
mesa (mensa)
sobre a qual colocavam os emblemas da
comunhão, o pão e o vinho, nas capelas das Catacumbas, e
usa unicamente a palavra
altar (ara),
quando se refere a
oração e louvor, de que a Escritura fala sob a figura de um
sacrifício espiritual (18).
Torna-se desnecessário narrar minuciosamente como a
tampa de pedra que cobria a sepultura de um mártir, tornou-
se em mesa; como essa
campa
foi transformada em
altar;
como
no decorrer do tempo, uma simples
ceia
comemorativa tornou-
se um
sacrifício,
ou como uma refeição, uma missa. Tais
mudanças, contudo, tiveram lugar e continuam a ser o
costume corrupto da Igreja de Roma. As Igrejas Reformadas,
com algumas tristes exceções, conservaram o costume
primitivo, e escriturai de observar a Santa Ceia como foi
instituída pelo Senhor, e desprezaram o inexplicável e
impróprio
altar,
restabelecendo, a
mesa
primitiva (19).
Acaso não teremos razão em afirmar que, a todos os
respeitos, verificou-se um grande desvio "da simplicidade
(17)
Igreja nas Catacumbas,
p.342.
(18) Hebreus 13.15.
(19) O uso necessário de luzes nas Catacumbas foi provavelmente a origem do uso romano de
enterrar e adorar os mortos com velas e círios acesos, mesmo à luz do dia. Isto, também, era
um costume do paganismo, com cuja adoção, como em muitas outras, o católico romano
tornou-se o seu herdeiro. Também tem a mesma origem as luzes dos altares nas Igrejas
romanistas e a imitação ilegal desse costume nas Igrejas anglicanas. Vigilantino denunciou
com veemência esse costume, dizendo: "Quase vemos o cerimonial pagão introduzido nas
igrejas: pilhas de velas acesas enquanto o sol brilha". O concilio de Elvira proibiu esse
costume. (Cânon. 34). Porém, com a crescente corrução da Igreja tornou-se antes do fim do
século V uma praxe estabelecida.
que em Cristo" e que a Igreja de Roma nos apresenta uma
forma corrupta e pagã de "cristianismo"?
Roma não somente desonrou a Cristo no tocante ao seu
ofício de Sacerdote, mas, gradualmente, foi exaltando homens,
levando-os a partilhar do ofício de
Mediador,
que só pertence a
Cristo. Aos apóstolos, aos mártires, à virgem Maria, a
espíritos libertos de homens e de mulheres, e também aos
anjos, essa igreja revestiu com os atributos da onipresença de
Deus e ensinou que se lhes poderiam dirigir orações como se
fossem mediadores de intercessão. Também pode ser
atribuída
diretamente
à origem paga, esta corrução do
"cristianismo", que consiste na adoração dos
espíritos
e na
consideração mostrada e na adoração rendida aos manes
divinos ou espíritos dos grandes homens, que no paganismo
eram considerados deificados.
Quando consideramos as circunstâncias de os crentes
primitivos, retendo, naturalmente, algumas idéias do pa-
ganismo, as associarem nas Catacumbas aos restos mortais
daqueles que em vida amaram e honraram, não podemos
estranhar que tal erro se introduzisse tão cedo na história do
Cristianismo. Nas lápides dos seus esconderijos nas
Catacumbas descobrimos os primeiros sinais e lemos a
história dessa corrução, que não chegou ao seu apogeu senão
muito tempo depois de se terem fechado as Catacumbas, como
cemitérios cristãos (20).
Primeiro veio um
sentimento
pio, suspirado em oração
sobre uma sepultura e grosseiramente gravado na pedra pela
mão de qualquer amigo saudoso e triste, como os seguintes:
DOCE FAUSTINA, VIVE EM DEUS. ZOTICO, ALEGRA-
TE! BOLOSA, DEUS TE FORTALEÇA!
Acostumados a se dirigirem aos mortos, veio então o
segundo degrau do erro - a expressão e esperança de que os
(20) Na Galeria Lapidaria (se não é arrojo tirar uma conclusão sumária sobre o conteúdo de
coleção o vasta) o nome da virgem Maria "não aparece nem uma vez". Tampouco é
encontrado "uma única vez" em qualquer inscrição verdadeiramente antiga contida nas obras
de Aringhi. Boldetti ou Bottari. Se qualquer exceção se for descobrir, não enfraquecerá o
contraste espantoso que neste ponto existe entre as igrejas primitivas e as da Idade Média.
A
Igreja nas Catacumbas,
p.333.
mortos, estando com Cristo, pudessem utilizar-se da sua in-
fluência a favor dos que ficaram na Terra. A
única
inscrição
deste caráter na Galeria Lapidaria, cuja data é desconhecida,
reza assim:
GENTIANO, CRENTE, EM PAZ; VIVEU XXI ANOS, VIII
MEZES E XVI DIAS. NAS TUAS ORAÇÕES ROGA
TAMBÉM POR NÓS, PORQUE SABEMOS QUE ESTÁS EM
CRISTO.
Veio depois o atual costume de orar à beira da sepultura
aos mortos. Isto, evidentemente, começou a ser praticado
antes do fim do século V. Então seguiu-se, como é natural,
quando a luz do glorioso Evangelho fica escondida, a procura
dos ossos dos mortos para santificar alguma igreja e para
tornar mais eficazes as orações que a eles eram feitas.
Finalmente, veio a adoração da
imagem
ou
pintura
do falecido;
assim reviveu, em tudo menos no nome, a idolatria dos
pagãos. Com muita razão diz o Dr. Maitland que "o Panteon
de Roma, originariamente dedicado a
Júpiter e a todos os
deuses,
foi dedicado à
virgem Maria e a todos os santos;
o
edifício parecia ter sido cristianizado, porém, na verdade, o
'cristianismo' é que foi paganizado. Desde que ali se adorem
homens,
pouco importa por que nomes são invocados".
É fácil descer quando estamos numa rampa. Aproximemo-
nos mais do que nunca da adoração espiritual! Nunca nos
esqueçamos da promessa do Grande Mediador aos que crêem
nele: "Tudo o que pedirdes ao Pai
em meu nome,
ele vo-lo
fará". Tenhamos sempre na lembrança que na Escritura
inspirada está declarado: "Cristo vive sempre para interceder
por nós" (21).
(21) Assim se desenvolveu, no decorrer do tempo, uma vasta jerarquia celestial, dotada dos
atributos de Deus e usurpadora do ofício intercessor de Cristo, imitando o poli-teísmo pagão.
Os chamados Santos Padres da Igreja Primitiva reprovaram a adoração de qualquer santo ou
anjo ou a intervenção de qualquer mediador para com Deus além de Cristo. Diziam os anciãos
da Smirna: "Nós adoramos o Filho de Deus: aos mártires apenas os amamos". Santo
Agostinho diz: "Não sacrificamos aos santos, nem os adoramos, mas, apenas, ao único Deus.
deles e nosso: nem a nossa religião é culto de mortos". S. Crisóstomo diz assim: "Foi Satanás
que introduziu este culto dos santos". O Concilio de Laodicéia. realizado no ano 361. proibiu a
invocação de anjos como idolatria e como promotora do esquecimento de Cristo.
As
Catacumbas,
de Withrow, pp.445-449.
Mas ainda não dissemos tudo de Culto dos Santos. A
Igreja de Roma, tendo abandonado a direção das Sagradas
Escrituras, desprezado "o guia da sua juventude", e esquecido
"o concerto do seu Deus", parece ter sido deixada cair no erro,
para servir de aviso aos verdadeiros seguidores de Cristo,
para eles não se deixarem levar pelos afagos dos desviados ou
para não serem iludidos com aparências de santidade.
Do culto dos
espíritos dos mortos,
e dos seus
despojos
mortais,
e das
representações
de santos, a Igreja Romana caiu
no absurdo de inventar
mediadores imaginários
que nunca
tiveram sombra de existência. As revelações que traremos ao
leitor, se não se tratasse de assuntos tão sérios, provocariam o
riso; mas, assim, bem podem provocar lágrimas pelo que
revelam da natureza humana, ignorante e decaída. Todas as
afirmações que fazemos são tiradas de escritores católico-
romanos. A origem dos erros em apreço pode-se também
verificar nos despojos encontrados nas Catacumbas de Roma.
Mabillon, falando desses despojos, diz: "Exumaram-se
duas espécies de corpos: uns sem nome nem inscrição; outras
com uma ou com ambas as coisas. Os primeiros tiveram
nomes
dados pelo Cardeal Vigário ou pelo Bispo
que preside à Capela
Pontifícia. Esses santos são chamados de batizados" (22).
Mas os donos das ossadas encontradas não recebiam
nomes e eram declarados santos, mas também muitas vezes
elevadas à categoria de
mártires.
Uma "Santa Congregação de
Relíquias", reunida em 1668, publicou este decreto: "A Santa
Congregação, tendo examinado cuidadosamente o assunto,
resolve que a palma e o vaso tinto de sangue sejam
considerados como
sinais certos de martírio.
A investigação de
outros símbolos fica adiada por enquanto" (23).
Enquanto os arqueólogos discutem sobre a substância
encontrada a colorir certos vasos colocados nas sepulturas,
(22 ) Obras póstumas,
de Mabillon. vol.2. pp.251-287.
( 23 ) A Igreja nas Catacumbas,
p.174.
divergindo as suas opiniões quanto a ser
vinho, sangue ou
especiarias odoríferas,
aquela "Santa Congregação" com uma
penada decide a questão, elevando nada menos que todos os
donos daquelas sepulturas à dignidade do martírio. Até
admira a desusada moderação e sabedoria ao adiar "por
enquanto" a sua decisão sobre outros símbolos!
Raoul Rochette fala-nos de um desses mártires fabricados,
e apesar de ser romanista, exprime sérias dúvidas sobre o
caráter genuíno dele. Tratava-se dum novo santo, descoberto
em 1803, e que foi transportado de Roma para Perúgia. Na
sua campa achava-se representada uma tenaz e as seguintes
palavras precedidas das letras:
D.M.S.
(Consagrado aos manes divinos -
fórmula pagã).
BERNERO VIVEU XXIÜ ANOS E VII MESES.
Sobre esta inscrição Rochette observa: "Na ausência de
qualquer
sinal certo do Cristianismo,
este instrumento pode
ser considerado como pertencente à profissão do falecido.
Bernero, portanto, poderia ter sido um pobre ferreiro,
cristão,
se quiserdes,
(ou pagão), concordando melhor esta última
suposição com o caráter do seu epitáfio, excetuando o vaso de
sangue (?) achado em sua sepultura, o que é considerado como
um sinal de santidade cristã (24).
"O pobre Bernero, ou mais provavelmente Venério, era sem
dúvida um ferreiro pagão e agora é
incontestavelmente
um
mártir na glória. Em todo o caso, aprendamos a ter cuidado
para que com os nossos juízos falíveis e com a ignorância no
coração, não queiramos, seguindo tais exemplos, exercendo
prerrogativas que a Deus pertencem, de separar e
distinguir os santos dos pecadores, a não ser pela própria
prova de Deus (25). Todos os cristãos devem dar graças a Deus
porque a sua aceitação ou rejeição não depende das
adivinhações ou suposições de arqueólogos nem mesmo de
( 24 ) Memórias da Academia de Belas Letras e de Inscrições,
tom.13. citado na obra:
A
Igreja nas Catacumbas,
p.181.
(25) "Pelos seus frutos os conhecereis". Mateus 7.16.20.
uma 'Congregação de Relíquias' , porque assim é que está
escrito "O Senhor
conhece aos que são seus'" (26 ) .
Mabillon menciona mais dois casos de confusão neste
sacrílego trabalho de fabricar mediadores, que são citados
pelo Dr. Maitland (27). Uma confusão, como vereis, proveio da
ignorância da gramática latina; e a outra de um conhecimento
defeituoso das antigüidades romanas.
Acharam a inscrição:
D.M.
(Aos manes divinos - fórmula paga).
JÚLIA EVÓDIA, FILHA, A SUA PURA E DIGNA MÃE,
QUE VIVEU LXX ANOS.
Nunca santo algum foi fabricado com tanto desleixo: não
conhecendo ou não atendendo à diferença entre o caso
nominativo e o dativo, quem achou a inscrição tirou a con-
clusão de que a sepultura era de Júlia Evódia, e assim in-
ventou Santa Julia Evódia. Isto passou-se em Tolosa, mas o
estudo da gramática desfez a ilusão e Santa Julia foi privada
da sua santidade porque reconheceram que a sepultura era da
mãe.
O outro caso é igualmente infeliz. Tomou-se como o
epitáfio de São Viar, um antigo fragmento de pedra encon-
trado assim inscrito: S. VIAR. Algumas pessoas bem in-
tencionadas, diz o Dr. Maitland, "não se importando com a
singularidade do nome ou com a completa falta de teste-
munhos a favor da santidade do falecido, corajosamente
estabeleceram o seu culto". Dirigindo-se depois ao Papa
Urbano para solicitar indulgências (isto é, remissão do castigo
pelo pecado, em razão de orações dirigidas àquele santo), os
antiquários, esses importunos tão difíceis de satisfazer; sem
as devidas pesquisas, mandaram vir a pedra, descobrindo-se
então ser um fragmento com parte do título
Inspector das
Estradas;
sendo S a última letra de
Proefectus
(28) e Viar, as
primeiras quatro letras de
Viarum.
(26) 2Timóteo 2.19.
(27)
Igreja nas Catacumbas,
pp.182,187.
(28) Ou a última letra do genitivo singular (Curatóris) de
Curator Viarum,
cargo a que as
Catacumbas freqüentemente se referem. - Vede de Aringhi,
Roma subterrânea,
vol.2, pp.338 e
339, etc. Quem quisesse fazer uma conferência sobre este assunto, para tornar esta explicação
bem clara, deveria copiar a inscrição da seguinte forma:
Prae-feconS VIARum ou CuraioriS
VIARum.
É bem possível que essa lage formasse parte de um marco
miliário.
Vou apresentar outro caso porque mostra ousadia de
invenção tal que põe a um canto esses casos individuais.
Quem visitou a cidade de Colônia, no Reno, ou leu acerca
daquela "cidade santa", saberá que ela não tem rival no
número.e na santidade das relíquias que possui de santos,
apóstolos e profetas - "um enorme museu de anatomia, inútil
tanto a vivos como a mortos; e unicamente comemorativo da
fraqueza, das trevas, da ignorância e da superstição do
espírito humano". Assim o descreve o Dr. Jaime Johnson. Este
engana-se, contudo, quando diz que aquelas relíquias são
"inúteis tanto a mortos como a vivos". Os
mortos
estão, sem
dúvida, além de sua influência; os
vivos,
porém, fazem uma
rica colheita com as esmolas dos supersticiosos. O dinheiro
dado - vergonha é dizê-lo - pelos próprios protestantes
curiosos, que constantemente visitam essa casa de ossos, é
suficiente para manter verdadeiros enxames de padres e de
frades na ociosidade e na luxúria. O próprio Dr. Johnson
confessa que cometeu "uma tolice gastando alguns dias e
alguns dólares para examinar essa verdadeira mascarada".
Seria impossível enumerar todas as
maravilhas
que se
abrigam na tal Casa das Relíquias. Basta dizer que existe um
pouco do
leite da virgem Maria,
a cabeça do apóstolo Pedro,
"as entranhas" da rainha Maria de Medicis, e os crânios dos
três
Magos
que adoraram o Salvador e lhe ofereceram
presentes. Não precisamos acrescentar que os
miolos dos
Magos
não estão em Colônia, pois os crânios estão tão vazios
como as cabeças daqueles que pagam para vê-los.
Todas essas relíquias, porém, ficam a perder de vista
comparadas com a vasta coleção existente na Igreja de Santa
Ürsula. Ali jazem os restos mortais de um vasto "exército de
mártires"; os ossos de não menos de
onze mil virgens inglesas!
Como foram parar é que ninguém sabe ao certo e a história
delas é também muito contraditória. Dizem que estavam de
caminho de Rouen e, ou tomaram o véu ou sacrificaram as
suas vidas para evitarem casamento
com os bárbaros hunos que então possuíam a cidade. O que
aquelas onze mil jovens donzelas teriam que fazer em Rouen,
ou por que motivo, nessa ocasião, ou mesmo em qualquer
outra, abandonaram o lar materno; ou em que frota
atravessaram o mar, são pontos sobre que a história não nos
informa. Em todo o caso, estão os ossos, e a Igreja Romana
decretou a sua santidade e instituiu um culto e um dia santo
em sua honra (29).
Toda esta história das onze mil virgens santas e mártires
pode, sem dúvida, filiar-se à mesma origem dos outros casos
que foram apresentados: interpretação incorreta de alguma
inscrição obscura.
"Não nada" diz o Dr. Maitland "que se contraponha à
suposição de que toda a história se funda numa decifração
errônea de inscrição: URSULA. ET. XI. MM. VV. interpretada:
"Ürsula e onze mil virgens"
em vez de
Ürsula e onze virgens
mártires"
(30). Na verdade, numa lista de relíquias publicada
no ano 1117, mencionam-se os restos mortais das
onze
virgens; esses ossos não se tinham então multiplicado por mil,
como aconteceu mais tarde.
"O fraco testemunho histórico sobre que se baseiam as
homenagens idolatras, ainda tributadas às relíquias, pode ser
bem apreciado no caso da chamada Santa Teodósia de
Amiens. O seu epitáfio, encontrado numa Catacumba, perto
da Via Salariana, reza assim:
AURELI E THEODOSI E BENIGNISSIM E ET IN-
COMPARABIL E FEMIN E AURELIUS OPTATUS:
CONIVGI INNOCENTISSIM E NAT. AMBIANA.
AURÉLIO OPTATO, À SUA INOCENTÍSSIMA ESPOSA
AURÉLIA TEODOSIA: MULHER BENIGNlSSIMA E
INCOMPARÁVEL AMBIANA DE NASCIMENTO.
(29) O Breviário de Salisbury de 1555 (isto é, o ritual daquela diocese, anterior á Reforma) indica
a seguinte oração para a "Festa das Onze Mil Virgens": "O Deus, que. pela gloriosa paixão
das benditas virgens, tuas mártires, fizeste deste dia uma santa solenidade para nós, ouve as
orações de teus filhos e concede que sejamos libertados pelos
méritos e intercessões daquelas,
cuja festa hoje celebramos", etc.
(A Igreja nas Catacumbas,
p.163). Nada poderia, com maior
clareza do que esta passagem, provar que a Igreja de Roma faz dos santos e dos pseudo-santos
mediadores e intercessores.
( 30 ) A Igreja nas Catacumbas,
p.163.
"A Congregação das Relíquias decidiu que Teodósia era
santa e mártir e natural de Amiens. Os seus restos mortais
foram solenemente conduzidos para aquela cidade no dia 12
de Outubro de 1883, e recebidos com a maior magnificência
por não menos de
vinte e oito prelados mitrados e mil e
quinhentos outros eclesiásticos.
Foram colocados em um altar
suntuoso e honrados como nos tempos antigos honrariam uma
deusa titular. O Cardeal Wiseman pregou na solenidade... O
Bispo Salinis recomendou a homenagem a essas relíquias,
porque, disse ele, os mártires são, depois de Jesus Cristo,
também
Cristos
para abrirem o Céu ao gênero humano".
"Ainda relativamente pouco tempo, em 1870, as
relíquias de uma Santa Aureliana, virgem mártir do terceiro
século, foram transferidas das Catacumbas, com muitas
cerimônias religiosas, para Cincinati, nos Estados Unidos".
Na catedral católica romana de Búfalo, no Estado de Nova
Iorque, existe uma lage, retirada das Catacumbas, com a
seguinte inscrição:
D.P., PEREGRINUS, XII KAL. MARTIAS Q. VIXIT M.
PEREGRINO, ENTERRADO NO DIA DUODÉCIMO
ANTERIOR ÀS CALENDAS DE MARÇO, QUE VIVEU...
MESES.
"Era portanto uma criança; pois, apesar disso, pretendiam
que fosse um mártir; e uma figura de cera de um
adulto
com
lanhos profundos expõe a maneira suposta da sua morte. A
seus pés acha-se colocado o que dizem ser um vaso com o
sangue do mártir! Na mesma igreja existe o que dizem ser um
grande pedaço da verdadeira cruz sobre a qual gotejou o
sangue sagrado de Cristo, e pedaços dos ossos de S. Pedro, S.
Paulo e de muitos outros santos mártires!" (31).
( 31 ) As Catacumbas de Roma,
de Withrow. pp.141-143.
Concluiremos esta parte do assunto referindo a
invenção,
bem conhecida de uma santa, ainda adorada pela Igreja de
Roma, não obstante ter. sido desmascarada a fraude, e
esclarecido o assunto por homens doutos daquela mesma
Igreja. Ê o caso de Santa Verônica, cujo nome e existência
derivam das palavras
Vera icon
(que significa, retrato
verdadeiro), outrora escritas por baixo de todas as figuras que
pretendiam ser representações de Cristo. Estas cópias vieram
com o tempo a chamar-se
Veronicoe
e eram assim conhecidas
pelos1 escritores cristãos. no século XIV é que Roma
construiu de várias lendas, baseadas no uso errôneo da palavra
Veronicae,
a santidade e a história de Santa Verônica, e que
estabeleceu o seu culto. Existe na Basílica de S. Pedro em
Roma, uma estátua colossal desta santa inventada. Uma
oração publicada pelo Papa João XXII, dirigida ao suposto
retrato de Cristo, concede dez mil dias de indulgência aos que a
proferirem. Em Roma, em ocasiões fixas, o
lenço
de Santa
Verônica é adorado publicamente e a cerimônia é realizada com
o maior esplendor. Poucas partes do ritual romano estão mais
calculadas para ferirem a imaginação" (32).
"Como se fez prostituta a cidade fiel!" (33). Em lugar da
adoração do seu Senhor e Salvador, achamos a igreja, cuja "fé
era divulgada por todo o mundo" (34) e cujos primitivos crentes
preferiam, cheios de gozo, ser lançados às chamas, às feras ou
à tortura, do que praticarem o ato mais simples de idolatria,
gloriando-se agora na sua própria vergonha, prestando
homenagem e adoração a uma obréia, a santos mortos, a
espíritos e a relíquias, e até mesmo a homens e mulheres
imaginários, que somente existem nas lendas mentirosas que
ela inventou! razão para dizer-se que a religião que Roma
apresenta aos seus adeptos é uma forma de "cristianismo"
adulterado, corrompido, paganizado.
(32)A
Igreja nas Catacumbas,
de Maitland. pp.160 e 161.
(33) Isaías 1.21. (34) Romanos 1.8.
7
As revelações das
Catacumbas contra o
romanismo
"Mudaram a verdade de Deus em mentira",
Romanos 1.25.
Já mostramos como a Igreja Romana, desonra a Cristo
quando trata dos ofícios de Sacerdote e de Mediador,
atribuindo-os a outros, quando são privativos do Senhor Jesus.
Expomos que essa instituição, ao pretender repetir, cada vez
que celebra missa, o sacrifício de Cristo, está menosprezando a
sua obra redentora na Cruz. Agora vamos falar da desonra
que é feita a Cristo por outra doutrina introduzida pela Igreja
de Roma, a do
Purgatório,
no qual os cristãos, depois da morte,
são limpos e purificados do castigo
temporal
que lhes é devido.
Nas Escrituras não base alguma para tal doutrina. Perdão
e salvação imediata e completa é o que é oferecido a todos os
verdadeiros crentes em Jesus, sem qualquer reserva; não
segundo os méritos de cada um, mas em virtude do verdadeiro
sacrifício
que Cristo ofereceu por todos. Estamos certos de que "o
sangue de Jesus Cristo nos purifica de
todo o pecado" (1) .
O
sacrifício foi
completo
- um sacrifício de satisfação plena,
perfeita e suficiente, pelos pecados de todo o mundo" (2).
Ora, Roma afirma a insuficiência desse sacrifício, e diz que
o que o Salvador não podia fazer, ou não fez, os seus
sacerdotes
podem-no, isto é, livrar do castigo as almas que
sofrem. Este é um assunto grave que se não deve tratar le-
vianamente.
A Bíblia fala-nos de dois estados ou condições depois da
morte, sendo um a separação eterna da presença de Deus, e o
outro, a felicidade eterna e pura. Aqueles que se sentem salvos
estão certos de que a sua bem-aventurança é imediata e
completa.
"Ausente do corpo e presente com o Senhor"
é a
doutrina da Escritura (3). O sistema corrupto de que falamos
não oferece aos pecadores perdoados doutrina tão cheia de
conforto como esta. Aos seus adeptos, Roma só pode prometer
que a alma, quando deixar este corpo, vai, por muito ou pouco
tempo, para as chamas do Purgatório, a fim de pagar, com
castigo, o que havia de insuficiente na expiação feita por
Cristo. Esta falsa doutrina coloca nas mãos do padre um poder
que nenhuma potência do mundo possui. Para os ignorantes e
supersticiosos, o padre maneja "os poderes do mundo futuro e
assume a prerrogativa de Cristo, que "abre e ninguém fecha, e
que fecha e ninguém abre" (4).
De fato, esta doutrina coloca nas mãos do padre as chaves
da prisão, e ele não se tem acanhado de a usar como a chave
dos tesouros deste mundo. Ensinar que há um purgatório, que
a demora ali é incerta e que pode ser diminuída ou prolongada
à vontade do padre, é a usurpação mais atrevida de poder e,
ao mesmo tempo, o plano mais lucrativo para um sistema
sacerdotal, que o mundo jamais presenciou.
(1) João 1.7.
(2) Livro de oração comum a várias Igrejas Evangélicas.
(3) 2Coríntios 5.8.
(4) Apocalipse, 3.7.
Alguém talvez pergunte qual a extensão e duração deste
pretenso castigo expiatório preparado para os cristãos.
Respondamos informando a soma de remissões, que diversos
papas, com o nome de indulgências, têm concedido sob certas
condições. Isto dará uma idéia da extensão provável deste
processo expiatório e do "conforto" que os cristãos, morrendo
naquela igreja, poderão sentir ao enfrentar a morte.
O papa João XXII concedeu certa ocasião 300 dias de
indulgência; o papa Bonifácio deu a todos que dissessem uma
certa ladainha à Virgem sete anos e quarenta quaresmas de
indulgência; João XXII, noutra ocasião, ofereceu 3.000 dias de
indulgência. Outra indulgência concedida por cinco papas
confere 500 anos e outras tantas quaresmas de indulgência. O
papa Bonifácio VI foi ainda mais liberal e concedeu a quem
repetisse certas orações chamadas
Agnus Dei
10.000 anos de
indulgência. O papa Sixto, em consideração a uma oração que
devia ser repetida com devoção em frente à imagem da
Virgem, concedeu 11.000 anos de indulgência. Burnet
menciona outro caso, no qual concederam a todos os que
perante certa imagem rezassem com devoção cinco
padre-
nossos,
cinco
ave-marias,
e um
credo,
contemplando
piedosamente os símbolos da paixão de Cristo, 32.755 anos de
indulgências e Sixto IV, papa de Roma, ajuntou umas orações
e dobrou a indulgência acima mencionada, isto é, estendeu o
seu poder de indulgência a 65.510 anos. O que é feito,
pergunto, do perdão de todo o pecado oferecido pelo sangue de
Cristo, se ainda restam aos crentes (cristãos, notem!)
sessenta
e cinco mil anos de castigo no purgatório?
(5). Esta doutrina
introduz o que Cristo condenou e denunciou -
a venda de
perdão;
porque a Igreja Romana vendeu perdões e
indulgências aos que as podiam pagar (6), e ainda hoje pratica
obras semelhantes.
Entre os pagãos, os ricos podiam conseguir o que os pobres
não podiam; porém, o Evangelho do Salvador é
(5) Estes casos de indulgências ou remissões de castigo foram colhidos na parte 2 da
His-
tória da Reforma,
do Bispo Burnet, pp.38 a 58.
(6) Vede um pequeno folheto, de N. Roussel, publicado em português e intitulado:
A re-
ligião do dinheiro.
para ser anunciado aos mais pobres, "sem dinheiro e
sem preço". Quando João Batista, de sua prisão mandou inda-
gar a verdade do que se dizia a respeito do Messias, o Cristo
apontou, como testemunho, o fato novo do Evangelho ser
anunciado aos pobres. A religião de Jesus, em sua pureza, é
uma religião especialmente adaptada ao pobre, e podemos
ficar certos de que é espúria a religião que exige uma
contribuição como condição de entrada no Céu. O maior e mais
valioso sacrifício que podia ser oferecido, foi oferecido; e, se
pudéssemos oferecer todo o ouro que o mundo contém não
seria mais do que escória o seu valor, comparado com as
riquezas incomensuráveis de Cristo (7).
Antes de declarar o que as Catacumbas nos contam do
Purgatório, diremos que essa doutrina romana nem mesmo
possui o mérito da originalidade. É a imitação grosseira e
artificiosa de uma idéia pagã, tão claramente demonstrada na
Eneida do poeta pagão Virgílio, como se aquele poeta fora
católico-romano. Virgílio descreve o seu Purgatório no Canto
VI da Eneida, como se pode ver no original ou em qualquer
tradução.
Vamos agora ao testemunho das Catacumbas. De todas
as doutrinas de que temos falado, o Purgatório certamente não
seria olvidado nos epitáfios, se tal idéia houvesse tido
acolhimento na Igreja Primitiva. Quantas expressões de desejo
pelas orações e esmolas dos vivos não teriam ficado gravadas,
se houvesse a crença de que isso podia tirar as almas das
chamas! Mas o que é que se dá?
Nenhuma palavra, nem
mesmo uma referência vaga ao Purgatório, se encontra nas
Catacumbas!
EM DEUS. EM CRISTO. EM PAZ. EM
REPOUSO. NA MORADA DO DEUS ETERNO. LEVADO
PELOS ANJOS. DESCANSANDO. DORMINDO. É
PROIBIDO CHORAR. ELE MORA ACIMA DAS ESTRELAS.
Tais são os ecos invariáveis das galerias das Catacumbas.
"Nenhuma condenação há para os que estão em Cristo".
"Ausentes do corpo, presentes com o Senhor". "
Desejando
(7) Efésios 3.8.
151
partir e estar com Cristo".
Tais eram as doutrinas e a dos
cristãos primitivos. Eles criam nas misericordiosas palavras
outrora ditas a um desgraçado pecador, o chamado Bom
Ladrão, que foi arrancado de um mundo de pecados e de
morte ignominiosa, para marcar a entrada triunfal do
Salvador no mundo dos espíritos, o qual ali mesmo na cruz
provou ser o Redentor,
"poderoso para salvar". -
"HOJE
ESTARÁS
comigo no Paraíso",
foram as gloriosas palavras de
Cristo, que provam ser o Purgatório uma pura invenção de
Roma.
O sr. Withrow escreve: "Todas as expressões das Cata-
cumbas, aplicadas à morte do crente, indicam a certeza da paz
e da felicidade do espírito". E cita o seguinte: "Ano 339.
Descansando bem em paz". "Finado em paz". "Ano 348.
QUIESCIT, "DESCANSA" - não Requiescat (forma moderna)
"Descanse!" e muitas outras ilustrações.
"Nas Catacumbas não existe traço algum daquela doutrina
torturante que suspende o coração nas garras da terrível
incerteza, e arranca das afeições saudosas rios de dinheiro
para um sacerdócio mercenário que se arroga funções
fantasmagóricas para libertar das chamas do Purgatório as
almas dos finados. Não! A Igreja Primitiva possuía a de que
os seus membros queridos que tinham partido estavam na
vida eterna e na doce bem-aventurança do Paraíso" (8).
Estamos justificado da afirmação de que o Romanismo é a
corrução e paganização do "cristianismo". É verdade que o
sacerdotalismo, o sacrifício da missa, os "santos mediadores" e
a doutrina do Purgatório são, principalmente, influência do
paganismo. Isso tudo desonra o Cristianismo, que é puro e
vivo.
A Igreja Romana pretende-se a interpretadora das
Escrituras Sagradas.
É desnecessário provar que as Escritu-
ras contêm mandamentos e incentivos para que todos as leiam
e examinem e cheguem a compreender o seu ensino, segundo o
talento e inteligência que Deus tenha dado a cada um.
( 8) As Catacumbas,
de Withrow, pp.424 e 445 a 446.
Ora, o que nós cremos e praticamos sobre este ponto é a
crença e a prática da Igreja Primitiva. Os crentes de Beréia
foram louvados pelo interesse que mostravam pelas Escri-
turas (9). Timóteo recebeu aplausos por conhecer as Escri-
turas
desde a sua infância,
e foi-lhe recomendado que con-
tinuasse a estudá-las (10).
Porém, não é nas Escrituras que temos a prova deste
fato. Tertuliano, que viveu no segundo século, informa-nos de
que nas festas de caridade
"as Escrituras eram lidas e
explicadas".
Também Justino Mártir nos diz: "No dia chamado
Dia do Sol (11) todos os que moram na cidade ou no campo
reúnem-se em um mesmo lugar, onde
lêem os escritos dos
apóstolos e dos profetas,
durante o tempo de que podem
dispor".
Também a existência do cargo de
Lector
(Leitor) prova que
o serviço público religioso consistia principalmente na leitura
das Escrituras. O fato de formarem as Escrituras o estudo
principal dos cristãos primitivos é tão notório que é
desnecessário dizer mais, salvo que cada escritor cristão dos
três primeiros séculos cita as Escrituras com abundância. Na
verdade, foi asseverado com muita verdade que, se os livros
sagrados fossem perdidos ou destruídos, quase tudo poderia
ser recuperado por meio dos escritos cristãos dos primeiros
três séculos.
Mas o que dizem as Catacumbas sobre este ponto? A
evidência é tão abundante e satisfatória quanto poderia
desejar-se. As galerias das Catacumbas fornecem-nos
exemplos vivos. Os artistas cristãos das Catacumbas inspi-
ravam os seus desenhos na história sagrada; era a única
história que conheciam ou que queriam conhecer. Se igno-
rássemos inteiramente o primitivo desenvolvimento da arte
cristã em Roma, haveria quatro coisas, que se nos afigurariam
como probabilidades em relação a isso.
PRIMEIRA. Considerando a abundância de material
apropriado, a perfeição que as belas-artes tinham atingi-
(9) Atos 17.11.
(10) 2Timóteo 3.15,16.
(11) O
apologista dirige-se aos pagãos e por isso chama "Dia do Sol" ao Domingo, que quer dizer.
Dia do Senhor,
e era assim,
Dies Domini,
como os primitivos cristãos chamavam ao primeiro dia
da semana.
do, a aptidão dos romanos para a escultura, esperaríamos
achar traços de arte, deixados pelos cristãos das Catacumbas,
ainda que humildes.
SEGUNDA. Esperaríamos descobrir que a sua
religião
formava o tema sobre que exercitassem o seu gênio artístico.
TERCEIRA. No meio da perseguição, sofrimento e in-
certeza de vida, esperaríamos que escolhessem assuntos que
representassem a sua posição, ou manifestassem pelos
sofrimentos ou triunfos dos outros.
QUARTA. Ponderando que muitos deles foram educados
no paganismo, não estranharíamos qualquer confusão de
idéias pagas e cristãs, nas suas obras de arte.
Ora, é interessante descobrir que a este respeito, as belas-
artes praticadas nas Catacumbas correspondem exatamente
às condições que pediríamos. Muito mérito artístico no
tratamento e na execução transparece a cada passo; a história
sagrada é quase invariavelmente o assunto das iluminuras e
ilustrações. Os sofrimentos do povo de Deus ou a sua
libertação da morte são os tópicos predominantes
(o s seus
próprios sofrimentos,
por uma delicadeza de sentimento sem
igual,
não são realçados),
ao passo que inconsistências pagas
aparecem ocasionalmente, fornecendo-nos uma prova
satisfatória do caráter genuíno das obras descobertas.
Examinemos algumas dessas interessantes obras de arte,
fazendo comentários sobre cada uma. Primeiramente sobre
assuntos do Velho Testamento.
Noé, salvo na Arca, tipo daqueles que procuraram refúgio
na Igreja Cristã, é representado, geralmente no ato de receber
a pomba com o ramo de oliveira, significando paz, esperança,
reconciliação. Eis uma gravura, reprodução dum quadro sobre
Noé, que poderá servir como espécime de um bom número de
quadros semelhantes.
Em seguida a Noé, Jonas foi talvez o personagem mais
favorito. A sua história era considerada como símbolo da
morte e da ressurreição. "Nas capelas subterrâneas", diz o Dr.
Maitland, "quando os vivos estavam separados dos mortos
apenas por uma lage de pedra, e algumas vezes sujeitos
a irem fazer-lhes companhia por causa da violência dos seus
inimigos, mesmo antes do fim do seu culto, a esperança de
uma vida futura ocupava naturalmente um lu
gar
proeminente
no seu credo e tudo que pudesse auxiliar uma vacilante a
ser firmada na alegre realidade era avidamente aproveitado".
Jonas escapando do peixe ou reclinado debaixo da hera pode
ver-se por toda a parte, primeiro riscado nas paredes e depois
esculturado nos sarcófagos.
No emblema de um santo ressuscitado esqueceram-se dos
pecados e das tristezas do herói original... Porém, ainda
um sentido mais profundo nesta inscrição muitas vezes
repetida: "UM MAIOR DO QUE JONAS ESTÁ AQUI". Era a
aplicação divina deste personagem à morte e ressurreição de
Cristo que lhe dava interesse particular; pois a Igreja viu, por
uma dedução feliz, na ressurreição do seu Chefe, a
ressurreição certa de seus membros.Num pequeno fragmento
de mármore, o cristão dos
tempos antigos traçava o seu próprio destino: a sua passagem
do elemento instável (exprimindo muito bem a vida presente)
pela porta da morte - bem representada no terrível monstro,
que pôde agarrar mas não reter a sua presa. Na
representação, Jonas está sendo expulso do navio para a boca
do grande animal. Tudo é evidentemente simbólico,
emblemático e não rigorosamente histórico. A própria rocha a
que Jonas se segura talvez tenha referência ao emblema
escriturístico comum de Cristo.
Damos aqui outros assuntos do Velho Testamento, que
têm uma significação semelhante. vimos anteriormente
uma pintura a fresco, Daniel libertado dos leões. De um
fragmento de sarcófago vemos agora os três jovens, salvos da
fornalha ardente na Babilônia, achando-se representa-
dos em atitude de oração, e a entrada triunfante de Elias no
Céu num carro de fogo, com a capa, de tamanho despro-
porcional, a ser entregue a Eliseu, que, para mostrar a
diferença de idade, é representado como uma criança. Este
último caso revela grande arrojo como obra de arte (12).
( 12 ) A Igreja nas Catacumbas,
de Maitland, p.304. Uma reprodução desta moeda aparece no final
deste capitulo.
Todos estes assuntos são alegres e animadores. A Igreja
Primitiva nunca representava cenas de caráter triste: o li-
vramento de um judeu dos leões da Babilônia era preferido à
destruição de um cristão pelos do Coliseu; e os três hebreus
preservados da ira de Nabucodonosor era assunto mais
consolador que as vítimas da crueldade de Nero, envoltas em
pano alcatroado e usadas como tochas para iluminar o circo
(13).
(13)
Igreja nas Catacumbas, p.11
1
Jr^<l
Acha-se também representada nas Catacumbas uma
grande variedade dos milagres de Jesus. Na página seguinte
temos uma representando o milagre da multiplicação dos
pães e dos peixes, e outra representando a mudança de água
em vinho, em Caná da Galiléia.
Um dos argumentos da escola materialista do século
passado era que, se os cristãos primitivos tivessem crido nos
milagres de Cristo, apelariam para eles com maior freqüência
nas suas controvérsias com os adversários pagãos. Sobre a
resposta a esta objeção o Dr. Paley mostrou muito
conhecimento e tino nas suas
Evidências do Cristianismo
(18).
Mas se o autor tivesse tido o conhecimento das Catacumbas
(14) João 11.44.
(15) Parte 3, cap.5.
cristãs que nós temos hoje, ter-se-ia poupado a muito trabalho
e desfeito a objeção, apontando para as
evidências esculpidas
na rocha com estilete de ferro para sempre.
Cristo, no seu caráter evangélico de
"Bom Pastor",
é uma
decoração muito favorita nas Catacumbas. Nos três desenhos
apresentados abaixo encontramos o assunto levemente
variado. Em dois deles o Bom Pastor leva para casa os
cordeiros extraviados e fracos. Está vestido à moda romana. A
flauta paga, a flauta de Pan, está representada
para indicar o cargo. No desenho seguinte observa-se o mo-
nograma de Cristo na cabeça da figura, a fim de remover toda
a dúvida quanto à pessoa representada. Pode-se notar nestes
desenhos grande diversidade de idade e de aparência pessoal.
É evidente que os cristãos da Igreja Primitiva nunca tentaram
fazer
retrato
algum do seu Divino Mestre, de cujo semblante,
ainda que houvessem sido transmitidas quaisquer descrições,
nenhuma semelhança havia sido preservada.
Parece que os cristãos primitivos estavam tão pouco
dispostos a tratar dos sofrimentos do seu Senhor, como dos
seus próprios. Quase que a única alusão aos sofrimentos de
Cristo encontrada nas Catacumbas, está num sarcófago,
representando cenas das últimas horas de Cristo na Terra.
Um quadro representa Cristo a ser coroado por um sol-
dado romano; mas com uma habilidade tocante o artista evita
a idéia de dor, substituindo a coroa de
espinhos
na cabeça do
Salvador, por uma de
flores.
A razão melhor e
mais plausível que pode justificar este procedimento é que os
cristãos daquele tempo consideravam, mais do que o temos
feitos em épocas posteriores, os sofrimentos de Cristo e do seu
povo como motivo para alegria. Os apóstolos consideravam-se
felizes por terem sido considerados dignos de sofrer
perseguição por amor de seu Salvador crucificado; e Paulo
podia exclamar:
"Deus não permita que me glorie, senão na
cruz de nosso Senhor Jesus Cristo"..
Encaravam os sofrimentos alegremente, como matéria para
regozijo. Foi uma época posterior e mais fria que introduziu as
representações dolorosas dos sofrimentos da natureza humana
de Cristo, para auxiliar a fé decadente, e quase extinta. Entre
as escassas alusões às cenas da paixão de Cristo sobre a Terra,
há duas, aqui apresentadas: Uma
delas representa Pilatos, a esposa e um servo; o primeiro
está
lavando as mãos à moda oriental, como relata S. Mateus 27.24.
O assunto, como o Dr. Maitland sugere, parece fazer referência
à declaração da inocência de Nosso Senhor:
"Sou inocente do
sangue deste justo",
e, portanto, a
inocência dos cristãos quanto à acusação de traição que contra
eles fizeram os seus perseguidores pagãos.
A outra escultura é dum sarcófago. O assunto é Pedro
negando o seu Mestre e o galo cantando. Esta obra de arte e'
de data posterior ao tempo de Constantino, porque aparece
no fundo uma das Basílicas Romanas, ou Tribunal de Justiça,
construído durante aquele reinado para uso dos cristãos, como
lugares de culto. Estes edifícios servem para mostrar a origem
de organizações eclesiásticas, que desde então entraram em
uso geral (16).
Já se disse que, se as Sagradas Escrituras se tivessem
perdido, quase todas se podiam reconstituir pelos escritos dos
primeiros escritores sagrados, os santos padres. Pode-se
mesmo asseverar que os acontecimentos mais interessantes e
proeminentes narrados na Escritura se poderiam re-
(16) Encontra-se plena e satisfatoriamente estudada a origem da arquitetura eclesiástica
na obra
A Igreja nas Catacumbas,
do Dr. Maitland. 2' edição, pp.339-349. A Capela da
Catacumba e o Tribunal Romano foram os primeiros modelos que inspiraram a arquitetura
eclesiástica, o que se efetivou no quarto século. As torres e as espirais foram introduzidas
mais tarde.
constituir por meio de pinturas e esculturas encontradas nas
Catacumbas. Constituem uma vasta galeria da arte ou
ilustração bíblica; e servem para que ninguém hoje em dia
tenha o arrojo de afirmar que os cristãos primitivos não
possuíam ou não conheciam as Escrituras.
O que se chama "Ciclo Bíblico" das Catacumbas com-
preende o grande drama da Redenção desde a queda do ho-
mem até a sua restauração por meio do homem maior, Jesus
Cristo. O que segue e um catálogo imperfeito de assuntos
bíblicos ilustrados nas Catacumbas Romanas:
ASSUNTOS DO VELHO TESTAMENTO
A tentação e queda do homem.
A sentença sobre Adão e Eva.
Noé na arca.
O sacrifício de Isaque.
Moisés no monte.
Moisés recebendo a lei.
O maná no deserto.
Moisés tocando na rocha.
Os sofrimentos de Jó.
A transladação de Elias.
Os três jovens na fornalha.
Daniel na jaula dos leões.
A história de Jonas.
ASSUNTOS DO NOVO TESTAMENTO
A adoração dos Magos.
Cristo e os doutores.
A mulher samaritana.
Cristo e o paralítico.
A mulher com o fluxo de sangue.
Cristo abrindo os olhos aos cegos.
Cristo e as crianças.
O milagre dos pães e dos peixes.
A mudança da água em vinho.
A ressurreição de Lázaro.
A entrada triunfal em Jerusalém.
A negação de Pedro.
Pilatos lavando as mãos.
O Cireneu levando a cruz.
Cristo coroado com flores.
O Bom Pastor
(por toda a parte).
Cristo crucificado
(em parte nenhuma).
O monograma, explicado, ou a cruz de duas linhas
traçadas nas campas, era no princípio o modo simples adotado
para exprimir a num Salvador crucificado. A transição do
simples para o complicado, do pacífico para o horrível, está
bem explicada nos seguintes extratos:
"Os símbolos primitivos eram tão rudimentares como
alegres:
Duas linhas em cruz
recordavam toda a história da
Paixão. No decorrer do tempo, a começa a esfriar, e o
escultor julga então necessário sugerir com mais força o
sentido do símbolo. Pelo ano 400, aparece ao de uma cruz
um cordeiro branco:
como auxílio do emblema do sacrifício, o
gênero humano pretente lembrar o sacrifício da expiação por
mais trezentos anos. No ano 706 o Concilio Quinisextano
retirou o cordeiro branco (17) e pintou em seu lugar
um homem,
primeiramente visto debaixo da cruz com os braços estendidos
como quem ora. Este interessante símbolo parece ter durado
todo aquele século.
"No nono século o pintor levantou Cristo, colocando-o no
madeiro. O sol e a lua obscurecidos aparecem agora por cima
da cruz; mas Cristo ainda ora com as mãos livres. No décimo
século Cristo é pela primeira vez representado como morto,
com os cravos enterrados nas mãos e pés. Pelo século treze, a
sua cabeça pende para um lado... Os pintores, tendo
desenvolvido o símbolo da Paixão desde a cruz simples até à
pintura completa, foram seguidos pelos escultores, que,
começando no século XI por um baixo relevo, no século XIII
chegaram ao crucifixo portátil. A tinha-se materializado.
A
vista tinha sobrepujado a e o tato tinha sobrepujado a
vista" (18) .
(17) Cânon 82.
(18) O simbolismo ainda para diante se degradou mais e o "crucifixo vivo" com os seus "estigmas",
ou cinco chagas, apareceu depois inventado pela Igreja Romana.
A Igreja nas Catacumbas,
pp.204-208.
De passagem, ficamos conhecendo o
perigo de empregar
símbolos em relação a coisas divinas.
uma tendência na
natureza humana, evidenciada pela história de todos os
tempos, para abusar do uso de símbolos e cair no perigo da
idolatria. Encerramos as referências às belas artes das
Catacumbas com uma citação que bem e concisamente resume
tudo que ficou dito:
"Em geral, pode-se com segurança dizer que as Cata-
cumbas, destinadas a serem o sepulcro dos primeiros Cristãos,
habitadas durante longos períodos por mártires, dizimados
durante as perseguições da Igreja e que viveram sob o domínio
imediato de tristes pensamentos e deveres cruciantes, não
oferecem, na verdade, senão heroísmo nas suas pinturas
históricas; e, na sua parte puramente ornamental, nada mais
do que assuntos alegres e animadores, tais como as
representações da vindima, cenas pastoris, festas de caridade,
frutos, flores, palmas, coroas de louro, cordeiros, e pombas.
Numa palavra,
nada senão o que um sentimento de inocência
feliz sugere.
Aqui não cenas de agonia; não pinturas da
cruz nem da paixão, nem da agonia, nem do suor de sangue,
nem da morte ou do enterro.'Para as cenas da crucificação
deveis ir a outros cemitérios, que
não
foram decorados nos
primeiros tempos do Cristianismo (19).
"No meio das suas vidas agitadas e na expectativa duma
morte dolorosa, estes primeiros seguidores da consideravam
a sepultura somente como
um caminho certo e curto para a
felicidade eterna.
Longe de associá-la com imagens de tortura
e horror, esforçavam-se por alegrar o túmulo com cores vivas e
animadoras, por apresentar a morte sob os símbolos mais
agradáveis e por a coroa de ramagens e
(19) A representação mais antiga e existente da crucificação é uma miniatura num
Evangelarium
sírio, datado do ano 586 da nossa era. Nenhuma representação das sete dores da
"Mater
Dolorosa
nem das Madalenas cadavéricas acompanhadas de caveiras desolhadas, como
perpétuo
memento mori.
Não pinturas da agonia de Cristo, nem de flagelos, torturas ou
angústias do martírio como os que em muitas igrejas nos perturbam a alma". "Olhando para
as Catacumbas somente", diz Rochette. "supor -se-ia que as perseguições não fizeram vítimas,
visto que o Cristianismo primitivo não fazia alusão a sofrimentos". Agincourt diz que, durante
30 anos de investigações, achou somente uma pintura e essa mesma de estilo posterior,
aludindo a martírio. (Vede
As Catacumbas de Withrow, pp.227 a 228; 275 a 278 e 373).
flores. Nestas criptas sombrias, entre todos esses fragmentos
funéreos e restos dos mortos, não se um símbolo sinistro,
nem imagens de desespero ou de luto, nem sinal de
ressentimento ou expressão de ódio ou de vingança. Pelo
contrário, todos estes assuntos respiram um sentimento de
compostura, amabilidade e amor fraternal... Também nas
primitivas igrejas, quando tentaram colocar pinturas nas
paredes ou nas cúpulas, todos os assuntos eram tirados do
Livro Sagrado. Os pintores que trabalharam em cima ti-
veram a mesma fonte de inspiração que os artistas que or-
namentaram as Catacumbas subterrâneas,
e essa fonte era a
Bíblia" (11).
Antes de terminar o assunto das
belas-artes
nas Cata-
cumbas, desejamos ainda que estas nos forneçam mais um
testemunho contra uma prática que Roma introduziu, para
sua perpétua vergonha: a de representar, como o fizeram os
seus predecessores pagãos, o
grande Deus, o
eterno, imortal e
invisível Jeová,
sob a forma de homem corruptível.
Os cristãos
primitivos, se bem que tivessem pintado com toda a
reverência e delicadeza Jesus Cristo em forma humana,
nunca se atreveram a desenhar Deus Pai em semelhança
humana (21).
(20 ) As Catacumbas de Roma,
de Macfarlane. pp.124-126. Encontram-se ainda mais provas de
que os cristãos primitivos usavam as Escrituras no fato de que havia, em tempos de
perseguição, pessoas que se desfaziam delas, e que. por isso. eram chamadas
traditors,
isto é,
traidores.
Traidores de Deus, que tinha confiado à sua guarda um dom sagrado. Os
traditors,
quando assim procediam, eram considerados pessoas
caídas,
isto é, apóstatas do Cristianismo.
Num sínodo reunido em Cirta. Numidia. por exemplo, um certo Paulo foi deposto do seu cargo
sob a acusação de traidor, e ao proceder-se à consagração de seu sucessor, soube-se que,
infelizmente, outros presentes tinham cometido o mesmo crime. - Optatus de Schismat.
Donatist. liv.l, p.39; Augustine cont. Cresc. liv.3, caps.26 e 28. Muitas outras referências ao
crime de abandonar as Escrituras Sagradas estão contidas nos escritos referentes à Igreja
Primitiva. Vede também o testemunho de Fénelon, escritor católico-romano
(Euvres Spiri-
tuels,
tom.4, p.241).
(21) O testemunho universal da antigüidade cristã opõe-se a esta prática tão comum na arte da
Idade Média. O erudito Bingham
(Orig. Ecles.
liv.6. cap.7). diz: "Em toda a história antiga,
nunca encontramos um só caso em que Deus Pai seja representado". Segundo Hemans, na sua
História da Arte Sagrada,
em nenhum dos mosaicos sagrados de Roma, desde o século IV ao
XP/, o Ser Supremo é representado, exceto simbolicamente por meio da mão.
No século XIV, contudo, uma janela colorida, um vitral, representa o Eterno Pai
como um
papa.'
Entronizado em glória, coroado com a tiara papal, e vestido de alva e túnica,
sustentando uma cruz, da qual pende o corpo inerte do Filho Divino.
Nos casos em que o assunto exigia qualquer alusão a in-
tervenção de Deus, introduziam o simbolismo da mão. Damos
aqui dois casos, em um dos quais Moisés é representa-
do recebendo as tábuas da Lei daquela mão envolta em nuvens
e trevas; no outro a mão estendida de Deus é representada
como interpondo-se para impedir o sacrifício de Isaque pelo
patriarca Abraão. Esta mão simbólica veio a ser o germe
donde se originou o desprezo pelo Segundo Mandamento,
desprezo que cresceu com o desenvolvimento da corrupção
humana, chegando a ser flagrante e evidente, que foi
necessário aquela igreja suprimir, como de fato suprimiu esse
mandamento do Decálogo que ela ensina ao povo (22).
Existe, encontrado em um manuscrito francês do século
IX, uma representação de
Deus Pai,
como
ancião -
precisamente
(22) O segundo mandamento, como se encontra na Sagrada Escritura, no cap.20do livro do Êxodo,
diz assim:
Não farás papa ti imagem de escultura, nem figura alguma de tudo que em cima no
céu, em baixo da terra ou nas águas debaixo da terra. Não as adorarás nem lhes darás culto]
Júpiter dos pagãos. restaurado. Em dois manuscritos do
Apocalipse, do século XIV, um dos quais está no Museu
Britânico, aparecem representações de Cristo, como um
cordeiro apoiado nas pernas trazeiras e recebendo o livro com
os sete selos "daquele que estava assentado no trono", isto é,
do Pai, representado como
um homem.
Estes casos seriam
ridículos se não fossem dolorosamente blasfemos e não vale a
pena reproduzi-los aqui (23). Em tempos posteriores este erro
tornou-se mais freqüente, e nas igrejas romanas, tanto as
pinturas como as esculturas provam até hoje que as leis de
Deus são desprezadas e reduzidas a nada; neste, como em
outros pontos.
No geral das igrejas católicas romanas, o que se hoje é
isto: a virgem Maria é representada como uma donzela, Cristo
como um jovem, Deus Pai como um ancião e o Espírito Santo
como uma pomba. Poder-se-ia talvez supor que a virgem Maria
estivesse representada como adorando as representações das
pessoas da Santíssima Trindade; não é, porém, assim no geral.
As Pessoas Divinas é que estão coroando a cabeça da Virgem.
É assim em Paris, na grande igreja da Madalena: Deus-Pai é
representado como
um homem
reclinado sobre um sofá! 0
Eterno JEHOVAH "que não desfalecerá nem se fatigará" (24)
está virtualmente representado como
descansando depois da
fadiga da criação!
Em que é que tal sistema é melhor que o dos
pagãos de outrora? Acaso poder-se chamar Cristianismo a
este sistema tão profundamente adulterado, que substitui a
adoração espiritual de Deus por tais absurdos? Neste ponto as
Catacumbas são testemunhas vivas contra o Romanismo, e
provam que esse sistema não é nem puro, nem primitivo.
A religião de Jesus Cristo distinguiu-se de tudo que o
mundo até então conhecera como religião, principalmente
pelo seu espírito de amor e de paz. A sua existência baseou-se
em um ato de amor sem paralelo. Todas as suas leis
resumem-se no amor a Deus e aos homens. Essas leis,
(23) Vede
Símbolos e Emblemas,
de Twining, Est. XI, figs.3 e 5. (24) Isaías
40.28.
expostas pelo seu Grande Autor, proíbem o ódio e prescrevem
o amor: Abençoai e não amaldiçoeis. Com severidade pouco
própria do meigo e bondoso Salvador, Jesus condenou o
espírito de perseguição
quando este apareceu no meio dos
seus discípulos:
Vós não sabeis qual é o espírito de vossa
vocação; o Filho do homem não veio para perder as almas,
mas para salvá-las
(25). Foi assim que Cristo falou quando os
discípulos sugeriram a propagação do Evangelho por meios
que não eram a persuasão bondosa e a força do exemplo
cristão.
Este não é o espírito com que a religião de Jesus tem sido
apresentada ao mundo pela Igreja de Roma. Neste particular,
essa igreja tem-se mostrado a mãe das filhas infiéis (2fi), filhas
que muitas vezes têm seguido o pernicioso exemplo da mãe e
perseguido aqueles que não seguem as suas idéias. Roma
permanece proeminentemente conspícua como igreja
amaldiçoadora e perseguidora;
amaldiçoa sistematicamente,
horrivelmente. E quanto a perseguições e derramamento de
sangue, tem sido a émula dos seus predecessores pagãos e
bem ganhou para si o título que lhe foi destinada no Livro
Sagrado:
Embriagada no sangue dos santos.
Não tentaremos descrever o morticínio que ela tem
cometido em nome da religião do amado Jesus. Nos vales do
Piemonte, na Suíça, no Tirol e na Boêmia, o sangue dos
Albigenses, Valdenses e muitos outros, que protestaram
contra as corruções de Roma, correu como água. No século
XVI, na França, essa Igreja ofereceu o espetáculo de um
espírito satânico de perseguição: homens, mulheres e crianças
foram assassinados sem descriminação: enforcados,
queimados em fogo lento, atirados de precipícios, espetados
em lanças. As mesmas crianças de peito, que ainda não
distinguiam a sua mão direita, não foram poupadas:
mataram-nas à vista das próprias mães. O sexo fraco da
mulher não a protegeu: numa única ocasião quinhentas foram
fechadas em um celeiro, que depois incendiaram, matando
todas elas queimadas.
(25) Lucas 9.55,56.
(26) Apocalipse 17.5.
Isto, porém, não é tudo. Essa igreja formou um verdadeiro
plano diabólico, estudado e metódico, para extinguir por
completo na França o Cristianismo puro, seguido pelos
Huguenotes ou Protestantes. Esse plano começou a ser
executado no dia 24 de agosto de 1572, continuando nos sete
dias subseqüentes. O morticínio que resultou desse plano é
conhecido na história pelo
massacre de S. Bartolomeu.
Nesses
dias morreram mais de 5.000 pessoas em Paris e pelo menos
20.000 em outras partes da França. O papa então reinante
regozijou-se com esta carnificina e publicamente rendeu
graças a Deus por tão feliz sucesso e enviou congratulações ao
rei da França pelo desempenho do plano
"desde longo tempo
premeditado e tão bem executado".
Chegou mesmo a cunhar
uma medalha comemorativa, na qual Gregório XIII aparecia
de um lado e do outro o massacre com a inscrição: "A
MATANÇA DOS HUGUENOTES, 1572" (27).
(27) Esta medalha está descrita na Obra
Numismata Pontificum Romanorum,
tom.l, p.336.
Laveleye, conhecido economista belga, censurando alguns atos de intolerância da Igreja
Romana na Holanda, escreveu ainda no ano de 1888:
"O papismo sempre considerou a destruição de hereges um triunfo para a Igreja. Antes de
entrardes na capela Sixtina, no Vaticano, passareis por um salão chamado "Sala Regia". Nas
paredes desta sala vereis suspensas pinturas de Vasari, representando os triunfes da Igreja
Romana. Quatro destas pinturas mostram os horrores do
A própria Inglaterra não escapou, apesar de ter sido uma
das nações que mais cedo conseguiu libertar-se do jugo
romano.
Os países Baixos foram literalmente ensopados em san-
gue. O duque de Alba gabava-se de ter morto 18.000 pro-
testantes em seis semanas e o número dos que foram mas-
sacrados naquele país, unicamente por causa de sua religião,
andou por 100.000! Na Itália, na Espanha, em Portugal, no
México, ou em qualquer outro país para onde vos voltardes, e
onde Roma dominou, lereis a história dessa igreja escrita em
letras de sangue.
A INQUISIÇÃO. Essa instituição estabelecida para se opor
ao movimento libertador da Reforma, sacrificou, desde o seu
início, centenas de milhares - ou como alguns escritores
asseveram - milhões de vítimas; o total nunca será conhecido
até o dia em que a "terra descubra o seu sangue e nunca mais
cubra o seus mortos".
Funcionando em segredo, destruindo a inviolabilidade dos
lares e até a sua pureza, para melhor obter vítimas;
condenando sem provas e muitas vezes sem ouvir o acusado;
extorquindo, por meio de torturas, testemunhos falsos para
incriminar e fazer sofrer os próprios parentes mais próximos e
queridos, a Inquisição apresenta-se como obra-prima da
crueldade satânica, permitida talvez para nos servir de aviso
para sairmos e nos livrarmos de Roma e do seu sistema.
massacre dos Huguenotes na véspera de S.Bartolomeu. O papa Gregório XHI ordenou a
perpetuação, nas paredes do seu palácio, da memória deste crime, cujo aniversário arrancou
lágrimas dos olhos do velho Voltaire. O único lugar do mundo onde o assassinato é
publicamente glorificado é a residência do papa.
"A Igreja Romana não tem em nada modificado os seus dogmas. Numa obra recentemente
publicada pelo cônego Moulart, com aprovação eclesiástica, e intitulada
A Igreja e o Estado,
lemos na p.297: "É verdadeiramente impossível que a igreja não requeira a sua prerrogativa de
usar e de aplicar castigos contra os hereges".
Laveleye comenta: "Quando a Igreja Romana julga necessário excomungar hereges, todos os
fiéis são obrigados a se abaterem de ter relações com eles". Em todos os tratados concluídos com
países católico-romanos, por Pio IX, foi estipulado que a religião católica seria o único culto
tolerado, e o exercício de qualquer outro culto proibido e perseguido.
Vemos, assim, que os papas Gregório XIII e Pio IX foram, senão os autores, ao menos os
executores do sistema de
Boycottage,
que ainda prevalece onde a Igreja Romana pode dominar.
171
E ninguém se iluda, dizendo: "Isto é história antiga; são
coisas do passado". Dizei-me qual dos cânones de Roma
recomendando a perseguição e o ódio foi jamais anulado, e a
minha caridade se preparará para admitir que essa Igreja
mudou o seu caráter; provai-me que ela, ainda que não os
tenha anulado, tem deixado de os usar onde pode, e então
mudarei de opinião. A verdade, porém, é que as suas leis
sanguinárias continuam nos seus códigos; as suas pinturas de
perseguição continuam adornando as paredes do palácio dos
papas; as suas medalhas sanguinárias figuram ainda na
coleção do Vaticano.
A Inglaterra foi um dia também perseguidora em questões
de consciência. Nos seus códigos figuravam leis reco-
mendando a queima dos "hereges" e a prisão, mutilação e
execução dos não-conformistas; sancionava também o uso da
tortura para extorquir confissões. Mas estas leis foram
derrogadas e ela agora pode defender-se se alguém lhe
chamar perseguidora e cruel. Porém Roma, desde que res-
valou para a intolerância, não mudou nem mudará. Ainda
pouco os seus órgãos justificaram perseguições e mostraram
que aquela igreja continua sedenta de sangue.
Não citaremos o que os protestantes dizem de Roma;
citaremos, porém, o que Roma, falando no
Uniuers (28),
órgão
oficial do Romanismo no continente, diz a respeito da
Inglaterra:
"Um herege, examinado e condenado pela igreja, costumava
ser entregue ao poder secular e punido de morte. Nada jamais
nos pareceu mais natural ou necessário. Para cima de 10.000
pereceram em conseqüência da heresia de Wicliffe; um número
ainda maior, pela de João Huss, e seria impossível calcular o
derramamento de sangue causado pela heresia de Lutero. E
ainda não acabou."
Ora, que dizem as Catacumbas sobre o espírito dos
cristãos que as ocuparam? Certamente, se alguma vez alguém
teve o direito de amaldiçoar, de odiar e de manter um espírito
de vingança, foram aqueles pobres persegui-
(28) Vede
L'Univers,
de Agosto de 1851. Também artigos escritos em Agosto de 1872, co-
memorando o tricentenário da matança de S.Bartolomeu, a justificar aquele vandalismo.
Vede também a nota da p.188 deste volume.
dos: condenados sem motivo; executados sem lei, sem processo
e sem misericórdia. Porém, é digno de nota o fato de que nem
uma palavra de ódio, vingança ou aversão foi jamais
pronunciada contra os perseguidores e inimigos; não se
encontra sequer um risco desgarrado em qualquer parede das
suas prisões, denotando desejo de desforra, de maldição ou de
vingança. Têm-se encontrado inscrições como as seguintes,
porém com espírito bem diferente:
MAXIMINO, QUE VIVEU XXIII ANOS, AMIGO DE
TODOS. EM CRISTO. NO QUINTO ANTES DAS
CALENDAS DE NOVEMBRO DORMIU GORGÓNIO AMIGO
DE TODOS E INIMIGO DE NINGUÉM.
A história do triunfo dos cristãos no tempo de Constantino
revela-nos a mesma coisa. Libertados das perseguições dos
pagãos e armados com os poderes do Estado, os cristãos não
usaram esses poderes contra os seus inimigos e perseguidores;
preferiram ocupar-se da libertação dos escravos, da abolição
dos jogos sangrentos do circo. Preferiram isto a vingarem-se
das injúrias que tinham recebido. Quem dera que o
historiador pudesse dizer o mesmo de todos os tempos
posteriores!
À objeção: Se o Cristianismo é uma instituição e remédio
divino, porque é que não conseguiu mais completamente a sua
missão de acabar com os males que ainda afligem o nosso
mundo? respondemos: "Porque o 'cristianismo' SE
CORROMPEU". Se o tempo permitisse, as provas poderiam
multiplicar-se, mas limitemo-nos aos erros fundamentais do
sistema; todas as outras matérias são apenas acessórias e
meras conseqüências. Expusemos de uma maneira clara que
estas corruções fundamentais consistem no desprezo de Jesus
Cristo, na usurpação dos seus direitos, pondo de lado os seus
ensinos e usurpando-lhe as suas funções: A de
Sacerdote,
substituída por um sacrifício suplementar; a de
Mediador,
substituída por uma legião de medianeiros inúteis, e a de
Profeta,
pela supressão da Palavra de Deus.
Roma, tendo revertido ao sistema pagão, veio manifestar
as piores feições do espírito do paganismo. A razão por
173
que isso foi permitido, não nos compete determiná-la. Basta
notar que tudo foi claramente
predito,
e que a verdadeira
Igreja de Cristo, desde os dias dos apóstolos até hoje tem sido
consolada pela certeza de que também está predita a
destruição desse falso sistema; e de que tal destruição será
repentina, terrível e completa (29).
Assim encarado este assunto, quão importante é para nós
compreendermos claramente os princípios desse sistema, de
maneira a nos precavermos contra as suas corrupções, porque
a Palavra inspirada, lavrando a sentença futura, desse
sistema informa-nos de uma "voz" que de rijo soará:
Saí dela,
povo meu, para que o sejas participante dos seus crimes e
para não seres compreendido nas suas pragas! (30).
O mero dos que ainda se submetem às doutrinas de
Roma é muito grande; e ela tem muitos admiradores que em
secreto lhe dobram o joelho sem o professar abertamente.
Alguém perguntará: Se é um sistema corrupto, por que então
tantos deixam-se enganar e dizem que o Romanismo é
apostólico, primitivo, puro e universal? Respondemos: Maioria
numérica (mesmo que Roma a possuísse) não poderia resolver
questão de verdade ou de erro. Quando o Cristianismo chegou
ao mundo, o paganismo era universal; esse fato, porém, não
provou que o paganismo fosse verdadeiro e que o Cristianismo
falso. Presentemente, segundo se crê, os adoradores de Buda,
na índia e na China são, em número, superior aos que
professam qualquer outra seita religiosa, porém, esse fato não
pode determinar a verdade do Budismo. O número dos que são
enganados pelo erro não pode converter o erro em verdade.
-se o mesmo com a repetição persistente de qualquer
declaração: uma mentira, ainda que muitas vezes repetida,
continua a ser sempre mentira. Nos
Atos dos Apóstolos
conta-
se que uma vez os habitantes de Éfeso gritaram por espaço de
duas horas:
(29) Vede
Escola Apostólica de Interpretação Profética,
pelo Dr. Maitland, em que se mostra que
a crença de que Roma é a Babilônia predita do Apocalipse, tem sido a da Igreja Cristã em
todas as épocas.
(30) Apocalipse 18.4.
"Grande é a Diana dos Efésios!" - mas nem por isso fizeram
divina a sua deusa imaginária.
O progresso da verdade é sempre vagaroso, ao passo que o
erro se propaga, em geral, com rapidez. A razão é óbvia: o erro
é abraçado por aqueles que não exigem provas, ao passo que
os amigos da verdade, até hoje uma pequena minoria da
humanidade, formam as suas opiniões, somente depois de um
exame minucioso.
Falemos de outro segredo do poder do Romanismo.
Asseveramos que uma mentira, por mais repetida que seja,
nunca poderá tornar-se verdade; porém é fato, embora la-
mentável, que a
constante repetição de uma mentira adquire,
no nosso mundo ignorante, a força de uma verdade.
Esta é a
razão por que o Sistema romano tem tantos adeptos, apesar
do seu afastamento flagrante do Cristianismo primitivo e
puro. Infelizmente, neste nosso mundo, no comércio, na arte,
na religião, o artigo falsificado ou adulterado passa muitas
vezes por genuíno e puro, somente pela asseveração
constante.
Concluímos com duas observações.
Primeira. Se nos for perguntado
onde estava a nossa
religião antes da Reforma,
respondamos que estava e está nas
páginas do Novo Testamento; que estava e está gravada nos
testemunhos constantes das lápides das Catacumbas de
Roma; que estava na alma dos verdadeiros cristãos, muitas
vezes escondidos nas montanhas, para fugir das terríveis
perseguições promovidas pelo "cristianismo" que substituiu o
CRISTIANISMO.
Segunda. Se queremos conhecer o Cristianismo, apren-
damo-lo da Bíblia. Qual de s, tendo a possibilidade de beber
a água pura e cristalina na nascente dum rio, irá mitigar a sua
sede muito longe dessa nascente, depois de suas águas terem
sido poluídas com as imundícias de grandes cidades?
Estudemos esta fonte divina do Cristianismo, onde as suas
características estão verdadeiramente delineadas, isto é, o
Novo Testamento, páginas que registram as palavras e as
ações do Divino Fundador do Cristianismo.
Ninguém seja tão insensato que condene o que é puro e
santo (o Novo Testamento) só porque o falso cristianismo
apresenta caricaturas da verdade. Ninguém se satisfaz rece-
bendo uma jóia de qualquer metal imitando ouro, pois o ouro, o
seu valor é insubstituível. Os peritos não aceita um quadro
imitativo de uma obra de Rafael, ou de outro grande pintor.
Eles declaram que não é original, que não tem valor.
Que se aceite a verdade, e a verdade esta contida na
Bíblia, que é a Palavra de Deus.
Seja o nosso alvo aprender de Cristo e,"com o rosto des-
vendado, contemplando como por espelho a glória do Senhor,
somos transformados de glória em glória, na sua própria
imagem, como pelo Espírito Santo" (3l).
(31) 2Corintios 3.18.
CONTRACAPA
As Catacumbas de Roma, de Benjamin Scott, constitui-
se em uma verdadeira revelação. Mostra a pureza e o vigor dos
primeiros seguidores de Cristo, os quais, mesmo coagidos, foram
fiéis até a morte. O escritor lança mão de seguros registros
históricos, acerca-se de autoridades renomadas no assunto,
como ele próprio, e mostra, pelas inscrições tumulares dos
primeiros séculos, a santidade dos defensores da verdade. Os
milhares de peregrinos que visitam Roma não tomam
conhecimento desta realidade. Scott afirma que as inscrições
exploradas e catalogadas somam 70 mil, significando este
número uma pequena fração de uma vasta necrópole com
quatro milhões de sepulturas em mais de oitocentos quilômetros
de galerias subterrâneas. " Nesta silenciosa cidade dos mortos" -
diz ele - " vemo-nos cercados por uma poderosa nuvem de
testemunhas, uma multidão que ninguém pode contar, cujos
nomes, desprezados na terra, estão inscritos no Livro da Vida.
Quem percorrer atentamente as páginas deste
comentário e seguir com precaução as eruditas explicações do
seu autor, de, forçosamente, colher impressões semelhantes
as de alguém que recebe, ao percorrer, em pessoa, as sepulturas
dos santos.
Este livro é um autêntico cicerone para quem
deseja conhecer os lugares onde palmilharam
aqueles que decidiram não olhar nem para a
direita e nem para a esquerda, mas, voluntariamente,
entregaram-se ao martírio.